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Aramis

"Personalidade", a receita para as melhores reedições

Na fonografia aplica-se a lei de Lavoisier: nada se perde, tudo se transforma. Assim, cada faixa gravada por um artista que dê certo passa a ser propriedade da fábrica e tem "n" reaproveitamentos conforme as regras do marketing. Se, em vida, um artista ainda pode tentar vetar o aproveitamento de gravações que não o agradem, após a morte ou a saída do artista da empresa - a fábrica faz o que quer. A Polygram, por exemplo, lançou um elepê com sessões musicais que Elis Regina havia vetado - e o disco se tornou um sucesso. O material que a grande Maysa deixou na RGE já teve inúmeras reedições, em remontagens das mais diversas. Infelizmente, nem sempre feitas com critérios. Entretanto, agora a Polygram acaba de fazer uma ótima série de reedições. Considerando o crescimento do público que busca gravações em laser, selecionou seis dos maiores nomes da MPB que teve por contrato e montou a coleção "Personalidade", que além de sair em Compact-Disc (Cz$ 1.800,00 cada), pode também ser encontrado em fita-cromo (Cz$ 480,00) e mesmo em elepê (Cz$ 300 a Cz$ 400, conforme a loja). A coleção abre, naturalmente, com Elis Regina, apresentada na contracapa em texto amoroso do cronista Fernando Abreu. A seleção de Roberto Menescal inclui 14 dos melhores momentos de sua carreira entre 1972 ("Águas de Março", "Casa de Campo") até 1978 ("Você", gravado na Holanda, com a participação especial de Thoots Thielemans, na gaitinha-de-bôca). Chico Buarque, hoje na RCA (agora Ariola), é apresentado na contracapa em texto de Tarik de Sousa, que explica a sua importância dentro da MPB. E dos quase 20 anos que o nosso maior compositor passou na Polygram, o produtor Menescal selecionou momentos como "Trocando em Miúdos" , "Meu Caro Amigo" (parcerias maiores com Francis Hime), "Gente Humilde", o proibidíssimo "Apesar de Você" e temas que nasceram para o cinema como "Vai Trabalhar, Vagabundo", "O Que Será" (de "Dona Flor e Seus Dois Maridos) e "Bye Bye, Brasil" (parceria com Menescal). Os quatro outros volumes foram dedicados aos quatro baianos do "após-calipso", os doces bárbaros Gal Costa (o único que continua na Polygram, aliás com seu novo e belo disco na praça) Gil, Gal e Maria Bethânia. Cada volume vale por um "the best of..." destes quatro baianos, hoje quarentões, e que, a partir de 1966/67, balançaram as águas de nossa MPB - seja como compositores (Cae, Gil), seja como intérprete (Gal e Bethânia). Obviamente, não deve ter sido fácil a Menescal selecionar da grande discografia de cada um os momentos mais representativos, pois especialmente Caeteno e Gil, a cada novo disco buscaram sempre o novo - ou ao menos uma (re)leitura diferencial, não só para satisfazer um público em constante processo de renovação, mas pelo próprio espírito de cada um. Assim, de Caetano há desde o "Superbacana" (1968) ou "Lua de São Jorge" (1979) até "Podres Poderes" (1984), mas mostrando também toda sua ternura vocal, como intérprete de "Coisas Mais Linda" (Lyra/Vinícius, 1983). Ainda mais elétrico, Gil mistura Ásia, África, Bahia, EUA, Zen-Budismo, candomblé, samba e rock'n'roll em suas músicas, como sintetiza Fernando Abreu ao dizer "os corpos das platéias de Gil sempre dançam e as cabeças sempre voam". Assim temos o Gil de "procissão", política manifestação de 20 anos passados ao romântico "Preciso Aprender a Só Ser" (73), passando por iluminações maiores como "Domingo no Parque" (67) e "Lunik 9" (também de 69). O repertório aqui reunido praticamente encerra em 69, ano de "Aquele Abraço" - pois Gil foi o primeiro dos baianos a deixar a Polygram. Foram muitas Bethânias nesses mais de 20 anos ou era uma só? Indaga Caio Fernando Abreu. Júlio Cortazer, que era fã confesso (não fosse um iniciado em magia) afirmava que Bethânia e Caetano são uma única pessoa: yin/yang, home/mulher. Oxóssi/Iansã. Foi muito in, ficou inteiramente out - até ultrapassar as divisões maniqueístas dos manipuladores da opinião pública para ocupar esse lugar muito especial só reservados aos mitos, continua Caio Fernando Abreu, beatânofilo convicto. E o entusiasmo de Caio se justifica: nas 14 faixas escolhidas para este álbum temos as muitas Bethânias, de "Esse Cara" a "Brincar de Viver", não só com o repertório familiar do mano Caetano e amigo Gil, mas também dando mais uma leitura a "Ronda" de Vanzolini ou mostrando até os méritos do falecido Mílton Carlos em sua fraternal parceria com Isolda em "Um Jeito Estúpido de Te Amar", para encerrar com "Sonho Meu", dos grandes Délcio Carvalho/Yvone Lara. Finalmente, Gal - a Maria da Graça Costa Penna Burgos, suavidade maior ao cantar, cuja voz é um cristal matutino - ensina mestre Tarik, acrescentando que esta cinderela balconistas de discos em Salvador que ouviu nos sussurros nobres de João Gìlberto a profecia de que seria a maior cantora do País. A mãe, dona Mariah (poeta, cujo livro está sendo editorado com o talento do paranaense Mirandinha), ainda com ela na barriga, cantava embalando o projeto de gente para que fosse quem fosse, nascesse cantora. E a voz está aí, embalando este disco magnífico pela seleção que tem "London, London", "Azul" , "Olhos Verdes", "Meu Bem, Meu Mal", "Canta Brasil, "Baby", "Folhetim", "O Amor" (de Cae, sobre poema de Maiakovski), "Verbos do Amor", "Festa do Interior" e até "Estrada do sol" da sempre inesquecível Dolores Duran. A coleção "Personalidades" da Polygram é um exemplo de saber usar um tesouro de acervo. Seleção primorosa, prensagem perfeita (afinal foi para fazer CDs que Menescal selecionou o repertório) e belíssimas capas criadas por Jorge Viana, com ilustrações de Mário Bag. Sem dúvida, a melhor série de reedições de 1987. E um presente ótimo para amigos brasileiros ou, principalmente, estrangeiros.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Música
16
20/12/1987

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