Pisco, o homem que acaba com o chiado
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 11 de janeiro de 1991
Se não fosse um dos mais competentes integrantes da equipe de produção da Rádio Roquete Pinto, no Rio de Janeiro, e assim poder identificar-se como radialista - Ayrton Pisco confundiria os recepcionistas dos hotéis em que se hospeda ao preencher a sua ficha de entrada no item profissão: "especialista em restauração fonográfica". Sem dúvida, Pisco é o único profissional do Brasil - e um dos poucos no mundo - que pode assumir oficialmente esta "profissão" originalíssima - e que lhe representa mais de 90% de seu gordo orçamento mensal. Afinal, este carioca de 54 anos, 48 de paixão pela música popular brasileira, tornou-se o maior especialista na arte de tirar chiados de paleolíticos 78 rpm e prepará-los com um som cristalino, puro, para permitir seu reprocessamento para o sistema do elepê - e nos últimos dois anos, também para o CD.
Assim como samba não se aprende no colégio, a arte de pegar gravações de 50, 60 ou até 70 anos, sujas, estragadíssimas e repletas de riscos e conseguir "limpar" o som é um desafio que ocupou mais de dez anos da vida de Ayrton Pisco, justificando que hoje cobre em valores calculados na base do dólar a recuperação de cada faixa - e, mesmo para um mercado limitado, não lhe sobre tempo nem para ler a biografia de Noel Rosa, escrita por João Máximo e Carlos Didier, que ganhou de presente de seu amigo Leon Barg, da Revivendo.
Pela amizade a Leon Barg - "mais do que um cliente, um "louco" pela nossa música" - que Ayrton conseguiu fugir por três dias de seu estúdio de gravação em Santa Teresa para, como convidado da Revivendo, vir conhecer Curitiba e se maravilhar com os tesouros da discoteca de Barg - que já conseguiu reunir 27 dos 32 mil discos 78 rpm produzidos no Brasil entre os anos 20 ao início da década de 60 - e que o coloca entre os cinco maiores colecionadores do país. O próprio Leon, sem falsa modéstia, reconhece que apenas a discoteca do jornalista Ary Vasconcelos, há 40 anos escrevendo sobre música, é mais completa que a sua. Aliás, Ary se tornou amigo de Leon e fazendo algo inédito - ceder suas preciosidades - concordou em permitir que Ayrton faça reproduções das gravações de Francisco Alves de "Alivia seus Olhos", "Pé de Anjo" e "Fala, meu Louro", as três mais raras gravações da discografia do "Chico Viola". O 78 rpm com "Alivia seus Olhos" - o segundo disco gravado pelo Rei da Voz - vale hoje mais de Cr$ 100 mil e o último exemplar localizado esteve nas mãos de Leon há alguns anos, mas na época, ele não dispunha de Cr$ 25 mil (o preço na ocasião) para comprá-lo. Ary não teve dúvidas: incorporou o disco em sua coleção. Agora, esta preciosidade fará parte de um dos volumes de raridades de Francisco Alves, em CD, programado para os próximos meses.
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Desde quando seu pai, Mery, 84 anos, trouxe para sua casa uma primitiva radiola em 1941, com os discos em que Mário Reis cantava "Vadiagem" e "Sorriso Falso" e os Anjos do Inferno em "Vatapá" e "Rosa Morena", o menino Ayrton Pisco viciou-se em MPB. Cresceu amando a época de ouro da MPB, teve diferentes ocupações - durante alguns anos foi da Marinha - mas sempre reunindo preciosidades para uma coleção de 6 mil títulos. Radialista há 20 anos - ex-Metropolitana, ex-Capital, desde 1983 na Roquete Pinto, onde produz e apresenta os programas "Rádio Memória" e "Estampas Cariocas", Pisco começou a sentir as dificuldades de utilizar nas emissoras - cada vez com o som melhor - gravações com chiados, que comprometiam inclusive o prestígio dos prefixos (em FM, então nem falar em apresentar discos 78 rpm). Começou assim, a pesquisar formas de melhorar a qualidade sonora, montando equalizadores, reservadores e retirando os chiados mais estridentes. Conseguiu localizar na Austrália, em Sussex na Inglaterra e em Los Angeles, apaixonados por som que também faziam trabalhos semelhantes, e começou a buscar know-how. Pouco a pouco foi montando um estúdio de recuperação de discos - "uma verdadeira clínica sonora", diz Leon - na qual começou a fazer com que 78 rpm inaudíveis ganhassem novas colorações. Evoluindo sempre, importando equipamentos - em investimentos que só nos últimos anos começou a recuperar através de trabalhos para reedições (ver texto abaixo), Ayrton Pisco dispõe hoje de uma tecnologia invejável. Embora não se recuse a falar do processamento técnico que utiliza para retirar o barulho das gravações antigas e garantir a maior fidelidade a restauração, naturalmente que só com o conjunto de aparelhos que dispõe - e sobretudo seu trabalho artesanal, cuidadoso - que lhe valeu até o cognome de "chinês" - é que consegue possibilitar que, por exemplo, uma gravação de Francisco Alves em 1928, um samba registrado por Carmen Miranda em 1932 ou uma bela valsa que Orlando Silva cantou em 1932 - e cujos registros originais se perderam, restando apenas raros discos (quase sempre em péssimo estado), possam serem rematizados e saírem em CDs, como vem fazendo para as produções de Francisco Aguiar ("Moto Discos") e Leon Barg, primeiros a investirem em reedições de discos em 78 rpm na tecnologia do laser.
Um trabalho paciente, dedicado e que enfrenta ouvidos inteligentíssimos, como de seu amigo Leon Barg, na busca sempre do som mais perfeito para suas reedições. Pisco, que só faz este trabalho dificílimo pela paixão que tem pela música brasileira, tem uma filosofia:
- "Meu compromisso é colocar no disco o som limpo mais próximo do original, eliminando o que for possível de ruídos e defeitos mas conservando a autenticidade que o intérprete deu em seu registro feito há dezenas de anos".
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