A simplicidade e a ternura das crianças nos textos de D. Flora
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 11 de maio de 1980
Em fevereiro de 1955, quando a Companhia Dulcina-Odilon veio a Curitiba a convite do então governador Bento Munhoz da Rocha Neto para inaugurar o auditório Salvador de Ferrante do Teatro Guaíra - oficialmente aberto no dia 19 de dezembro de 1954, nas comemorações do 1.º centenário de emancipação política do Estado, mas, em termos artísticos, só utilizando quase 3 meses depois, foram apresentadas cinco peças, como já registramos em várias ocasiões nesta coluna. Ao lado dos textos de Terence Rattigan (<< Vivendo em Pecado >>) - a primeira peça encenada no Guaíra - e de << Os Inocentes >>, adaptado da novela de hanry James - e que muitos julgam ter sido a primeira peça estreada, entre outros textos, deveria constar também << Três Menos Um >>, de uma autora paranaense. Acontece que a peça acabou sendo vetada, não pela Censura, que naquela época, final do governo-tampão de café Filho (que havia sucedendo a Getúlio Vargas, após seu suicídio a 24 de agosto de 54) não era tão rigorosa. A censura, discreta, foi feita pelo marido da autora, por coincidência o governador do Estado na época. É que Bento Munhos, engenheiro, professor, escrito, homem de grande formação humanística - enfim, um dos grandes (e poucos) estadista que o Paraná já teve, não quis que, dentro dos festejos oficiais do centenário do Paraná fosse apresentada uma peça de sua esposa, dona Flora Munhoz - filha do ex-governador Affonso Alves de Camargo (1873-1959), e que sempre apreciou muito a literatura e o teatro. A própria Dulcina de Moraes, hoje residindo em Brasília, onde vem tentando implantar uma instituição teatral lhe tinha agradado muito. Mas Bento, para evitar críticas da oposição e comentários ferinos, não permitiu que a peça da esposa fosse encenada. Dulcina e Odilon, mais os outros integrantes da companhia, fizeram entretanto uma encenação privada, na residência do governador, na Rua Carlos de carvalho - onde hoje a Eletrosul tem seus escritórios. E poucos amigos foram convidados para a única encenação desta peça que, dois anos depois, dona Flora publicaria em livro - hoje uma edição rara e disputada.
***
Entre 1954 a 1980, dona Flora publicou oito livros, o último dos quais, << O Sofá Azul >> (Editora Litero-Técnica, 148 páginas), está sendo lançado agora. Como os anteriores reúne crônicas e contos, dentro daquele estilo delicioso e leve que faz com que se admite o seu talento. Espirituosa, observadora, sabendo retirar do quotidiano os aspectos mais interessantes, a obra de dona Flora vem um constante crescimento. De << Apontamentos >>, crônicas reunidas em livros em 1954, até os 37 textos que compõe este << O Sofá Azul >> sente-se uma natural evolução. A cada novo livro, geralmente reunindo crônicas ou contos publicados esparsamente em O ESTADO ou << Gazeta do Povo >>, dona Flora consegue maior domínio da linguagem) e, principalmente, aquilo que é tão difícil de se alcançar a simplicidade. Seja na observação do quotidiano, nas anotações de viagens, no conto social (como << Laura >> ou << Frederico >>, neste volume) ou, especialmente nas estórias infantis, dona Flora tem um estilo muito seu e que, se apreciado sem cânones rígido, sem preconceito de literatices, encena. O fato de ter nascido numa família que sempre manteve-se no poder - e de ter sido esposa de um dos homens mais influentes na histórias do Paraná contemporâneo, obrigando-a a desdobrar-se entre múltiplas atividades - como Primeira Dama do Estado durante 4 anos, esposa e mãe de vários filhos, nunca fez com que dona Flora perdesse o sentido de saber observar o mundo ao seu redor. A leitura de seus contos (<< O Armazém de Seu Frederico >>, 1973), crônicas de Domingo >> e << Apontamentos >>, de 56 e 54, respectivamente; << Domingo a gente se fala >>, 75); contos (<< O Armazem de Seu Frederico >>, 73) e flagrantes de viagens (<< Ida e Volta >>, 76), mostra sempre o seu humor inteligente e, o que fascina, uma fácil comunicação.
***
Em 1977, em << A Beleza de Ser Criança >>, dona Flora reuniu as crônicas onde contava ternas e deliciosas estórias recolhidas da convivência com os filhos, netos e crianças de famílias amiga.
Como Pedro Bloch, de quem é uma grande amiga, dona Flora também coleciona aquelas estórias classifica de << Crianças diz cada uma... >>E, entre os contos e crônicas de << O Sofá Azul >>, dona Flora reservou as 20 últimas páginas para, sob o titulo geral de << Autenticidade Fascinante >>, transmitir as estórias, frases e fatos mais interessantes que ouviu de seus netos nos últimos 3 anos.
Diz dona Flora, que << só a criança é autêntica, enquanto se mantém a salvo da contaminação da sapiência rotulada, catalogo. E é essa verdade espontânea, inédita, preciosa que devemos reverenciar, dispensando devido importância à beleza daquele raciocínio virgem, livre, imaculado, irreprimido da primeira infância. Por isso é que, enlevada, escutou e registro o que dizem os pequeninos, valorizando a serenidade e a segurança de um discernimento exclusivo, fascinante, antes que, inevitavelmente, ele se vulgarize com o passar dos anos >>.
Para dona Flora conviver com a criança << é uma suavidade, é a maior delícia e a medida que a idade nos distância, mais eu me aproximo e me integro nelas. Saboreio o convívio e tudo o que ele me dá de fascinante: os gestos indecisos, o puro olhar, a falinha doce, o riso. Gravo o que dizem, o que pensam em voz alta - essas sucessivas gostosuras enternecem demais >>. E as estorietas reunidas por dona Flora, neste seu novo livro, já justificam que, aquele que sabem entender e valorizar a simplicidade, o busquem para uma leitura agradável. Eis algumas delas.
***
A caminho da casa da avó, num dobrar de esquina, Izabel viu um vendedor de rosas, desses ambulantes de beira de calçada.
- Vá, mãe, compre uma flor para eu levar pra vó.
A mãe achou lindo aquele desejo de sua menininha, parou e escolheu um botão: Izabel olhou para o botão e torcer o nariz.
- Esta flor, não. Quero uma flor acordada, esta está dormindo.
***
É óbvio que a avó quase chorou ao ver o rodiço bracinho de Izabel, mediante o presente, achou-se no direito de se cobrar e se pôs a fazer o que mais gosta - explorar as gavetas e especular o que há dentro: caixinhas, vidrinhos, óculos, espelhinhos, medalhinhas, leque, tesoura, canetas. Quando se aproxima da gaveta de documentos, a avó teve de dar um chega:
- Nesta não pode mexer.
Izabel já a desarmou:
- Ué, na tua casa não tem censura livre?
***
O sol estava se pondo dentro do mar e ela:
- Depressa, veja, pai - o sol já vai encostar na água e dai ele se apaga e não tem mais sol.
***
Leonardo passeia comigo no jardim e puxa conversa:
- Você sabia que foi o Deus que inventou tudo: eu você - olha em redor - a grama, as pedrinhas...Só duas coisas ele não inventou o avião e o telefone.
- Como você sabe?
- Ouvi o pai ensinando pro Ricardo que o avião foi o Santos Dumont que inventou e o telefone o Graham Bell.
***
- Quando você pesa, Leonardo?
-Eu peso 25, mas no meu sapato eu peso 28.
***
Pela manhã, toca meu telefone. É ele:
- Vó, que dia e mês eu nasci?
- Po quê? já está querendo ganhar algum presente? Falta muito, é só em 1.º de novembro.
- Não é presente, não. Quero saber meu signo, para a cozinheira ler meu horóscopo no jornal de hoje.
***
Leonardo era o caçula de três irmãos e é sempre o que leva a pior nas brigas. Quando nasceu um irmãozinho, a reação de Leonardo foi imediata:
- Até que enfim, agora tem um para apanhar de mim.
***
Estávamos no avião, por cima das nuvens. Um céu muito azul a perder de vista. Leonardo, a meu lado, fez sua pergunta:
- Agora, estamos no céu, né vó? Será que a gente vai ver o vovô Bento?
***
- Leonardo, vem cá. Vou te dar 100 cruzeiros por que sou sua madrinha.
- 100 é muito pouco.
- Quando você queria?
- Aí, uns 69.
***
Lá, são quatro meninos. É visto que quando a roupa fica pequena para um, o menor passa a usá-la. Leonardo reparou que, naquele dia, a mãe estava usando a cruz de cursilhista do pai, ai perguntou:
- Por que está usando a cruz do pai? Já ficou pequena para ele?
***
Leonardo dormiu comigo. Pela manhã eu lhe disse:
- A vovó vai ao cemitério, hoje, você quer ir junto?
- Por quê? morreu alguém?
- É aniversário do vovô Bento.
Respondeu de pronto:
- Bem, se tiver bolo eu vou.
- Meu querido, como pode ter bolo?
E como, surpreendentemente, as crianças gravam tudo que um dia ouviram, depressa concluiu:
- Ah, é mesmo tinha esquecido que o vô Bento tinha diabete.
Chegando lá, alguém havia acendido velas nos degraus da capela, e ele, mais que depressa, batendo palmas canta:
- Parabéns pro vovô nesta querida...
***
Dia de meu aniversário, pensou um pouco e já encontrou solução para eu remoçar:
- Vó, quando perguntarem tua idade, diminua vinte anos. Porque, somando as noites, você dormiu pelos menos 20 anos. esses 20 anos você não conta porque não viveu eles.
***
Ricardo, no seu desenho, coloriu uma das nuvens de todas as cores. A mãe corrigiu:
- Esta tua nuvem está errada. As nuvens tem só uma cor - ou brancas ou cinzas.
- Tá errada não. Essa nuvem é um arco-íris que virou nuvem.
***
Em breve, dona Flora Munhos da Rocha terá mais um personagem para suas estórias infantis. Nasceu há pouco sua primeira bisneta, neta de Mitzi, esposa de Raphael Almeida Magalhães, advogado, ex-governador da Guanabara e um dos políticos mais ativos do Rio de janeiro.
FOTO LEGENDA - Dona Flora
Enviar novo comentário