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Aramis

Um erro judiciário que se cometeu nos anos 80

Há quase uma década, quando o desembargador Alceste Ribas de Macedo presidia o Tribunal de Justiça, foi instalado uma modelar sala de exibição no edifício sede do Poder Judiciário. Com dois projetores 35mm, e um auditório confortável e luxuoso, este espaço raríssimas vezes foi utilizado para projeções cinematográficas - embora a cabine seja mantida em perfeitas condições, com revisões periódicas dos aparelhos. Assim, bastaria que o atual presidente do TJ, desembargador Abraão Miguel decidisse aproveitar o espaço para que os ilustres desembargadores e mais uma elite de convidados da área da Justiça pudesse, tranqüila e confortavelmente, assistir filmes que abordam questões judiciárias. Um gênero que sem precisar recorrer a décadas passadas continua a render ótimos e importantes produções. Existem mais de 100 filmes em que a maior parte da ação se passa nos meandros da Justiça e destes pelo menos 30 chegaram ao Brasil nos últimos anos - em condições, portanto, de serem alugados e projetados em sessões dirigidas. Uma idéia que passamos a assessoria do desembargador Abraão Miguel ou mesmo ao juiz Luiz Gastão Franco de Carvalho, presidente do Tribunal de Alçada, intelectual que sempre apreciou bons filmes, como garantem seus amigos. xxx Um exemplo de filme que deveria ser visto por todos que estão ligados à Justiça - dos mais importantes desembargadores e estudantes de direito - é "Um Grito no Escuro" (Cine Palace Itália, 4 sessões), contundente denúncia sobre recente erro judiciário ocorrido na Austrália - e que só foi reparado há um ano. xxx Em agosto de 1980, a família Chamberlain, em férias, foi a Ayers Rock - a maior rocha do mundo, principal atração turística daquele país - e aproveitou um camping no local para passar a noite. O chefe da família, Michael era um pastor adventista da Igreja do Sétimo Dia e sua esposa, Lindy, havia tido um bebê há nove semanas, Azaria. O casal tinha dois garotos, Aidan e Reagan. À noite - após visitarem o grande rochedo - participavam de um churrasco à luz da lua, com um casal amigo, Sally e Greg Lowe, enquanto o pequeno Reagan e Azaria, dormiam a poucos metros, na barraca da família. O pesadelo começou quando Sally ouviu um grito de bebê vindo da barraca dos Chamberlain. Correndo para ver do que se tratava, Lindy notou o vulto de um dingo (espécie de lobo, parecido com o coiote norte-americano), na escuridão e viu que sua filha tinha desaparecido. Dado o alarme, todos passaram a procurar o bebê e mesmo com ajuda da polícia, nada foi encontrado. A notícia espalhou-se rapidamente e na proporção que chegavam às cidades maiores começaram as especulações. O tempo passava e não havia sinal da menina. Jornais, rádios e televisões começaram a levantar suspeitas sobre o casal Chamberlain, com insinuações de que Lindy teria sacrificado sua filha (dizia-se que "Azaria", o nome do bebê, significava "sacrifício num lugar deserto"). O casal Chamberlain falava à imprensa, mantinha-se tranqüilo - sem desespero (o que era interpretado como culpa pela imprensa) e cresceram as acusações. Um inquérito foi armado e Lindy acusada de assassinato e seu marido Michael como cúmplice. No julgamento, realizado na cidade de Darwin, no Norte do país, Lindy estava grávida de 7 meses. Não havia provas reais, nem um motivo para o crime, mas apesar disto - na intolerância religiosa e pressão da imprensa - o casal foi condenado: Lindy a prisão perpétua com trabalhos forçados. Michael, por 18 meses, sentença suspensa para que pudesse cuidar dos filhos, inclusive da criança que Lindy deu à luz na prisão. Entretanto, cresceram protestos contra a farsa do julgamento e uma condenação levada pelo fanatismo anti-religioso (e mesmo um interesse de não prejudicar o turismo na região de Ayers Rock, pelo fato de um dingo ter devorado uma criança), culpando assim uma inocente. Cientistas assinaram uma carta exigindo revisão do processo e dos seus livros escritos a respeito, o mais contundente foi do advogado John Bryson ("Evil Angels"), publicado em 1985, quando Lindy ainda estava na prisão. Só há três anos, quando a polícia procurava o corpo de um alpinista inglês que havia caído no Ayers Rock, e acabou achando o casaco perdido da menina Azaria - prova de que o bebê havia sido mesmo devorado pelo dingo e não assassinado pela mãe - é que Lindy foi libertada. A repercussão do fato levou a produtora inglesa, Verity Labert, a realizar um filme a respeito. O livro emocionou a atriz Meryl Streep (8 indicações ao Oscar; premiada já duas vezes com o troféu) que aceitou fazer a personagem principal. Um cineasta australiano, Fred Schepisi, 50 anos, que havia estreado no cinema americano dirigindo Meryl em "O Mundo de uma Mulher" (Plenty, 85), se entusiasmou com o projeto e as filmagens foram iniciadas em princípios do ano passado. Só a 15 de setembro de 1988, quando a produção estava praticamente concluída, os Chamberlain conseguiram a decisão da Corte de Apelação Criminal, atestando que as condenações foram um "engano judiciário e deveriam ser anuladas", isentando-se de todas as acusações. xxx Lindy Chamberlain 42 meses na prisão e só pode reencontrar sua família em 1986. O caso abalou a opinião pública e os próprios realizadores do filme sentiram a grande emoção de estarem fazendo um filme-denúncia tão contemporâneo. Ou seja, uma obra de emoção, denunciando a intolerância, a irresponsabilidade da imprensa e o erro judiciário. Meryl obteve uma nova indicação ao Oscar por sua notável interpretação da australiana Lindy (com o sotaque do inglês falado naquele país) e, em maio último, disputando o festival de Cannes, recebeu a Palma de melhor atriz. Como seu marido, Michael, o ator irlandês (mas que fez carreira na Nova Zelândia e Austrália), Sam Neil (e com quem já havia atuado em "Plenty") está excelente. No grande elenco de suporte - 350 personagens e mais de 4 mil extras - foram aproveitados australianos. O roteiro de Schepisi e Robert Caswell, a partir do livro "Evil Angels" de John Bryson, procurou mostrar toda a intolerância sofrida pelo casal Chamberlain, as pressões e interesses - num caso de erro judiciário tão grave como o Dreyfuss - com a diferença de que este ocorreu em nossa década, há poucos meses. Parecendo lento em alguns momentos - mas seguro especialmente pelas excelentes interpretações de Meryl e Sam Neil, "A Cry in the Dark" deve, preferencialmente ser visto na tela ampla, pois embora já à disposição em vídeo (distribuída pela América Vídeo) e fotografia de Ian Baker é prejudicada, na tela pequena, nas (muitas) seqüências noturnas. Além do mais um filme da estrutura dramática como este deve ser curtido com atenção concentrada na tela, o que em vídeo nunca acontece. LEGENDA FOTO - A família Chamberlain: o drama de um erro judiciário ocorrido na Austrália nesta década é denunciado no atualíssimo "Um Grito no Escuro", em exibição no cine Palace Itália. Meryl Streep (morena, desglamorizada e com sotaque australiano) em novo show de interpretação como a sofrida personagem Lindy acusada do assassinato de sua filha de 9 meses.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
3
04/10/1989

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