Uma Fulaninha que todos amam
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 01 de abril de 1987
"Fulaninha" (Lido II, hoje último dia em exibição) tem a leveza, a graça e espírito saborosamente carioca dos melhores momentos de "Todas As Mulheres Do Mundo", que Domingos de Oliveira realizou há 20 anos passados e que praticamente teve sua fórmula perdida. Mariana de Moraes, uma ninfeta que preenche a "Receita de Mulher" que seu ilustre avô, Vinícius, deixou como parâmetro para o belo sexo, não chega a ser uma nova Leila Diniz, mas é encantadora. Sua imagem de adolescente sapeca enche os olhos do espectador nesta comédia descontraída e que antes de tudo é um canto de amor ao cinema.
Como Truffaut - a quem é prestada uma rápida homenagem na citação de seu "A História De Adele H", na marquise de um cinema - David Neves ama o cinema e as mulheres. E este filme é daquelas curtições em torno de uma história simples, através de um grupo de amigos, quase desocupados e que no bate-papo do aperitivo nosso de cada hora vão construindo o quotidiano que conduz a ação: Bruno (Cláudio Marzo), um intelectual com sonhos de se tornar cineasta, apaixonado pela imagem de uma ninfeta; Canela (Roberto Bonfim), produtor de vídeos pornôs; Jardel (José de Abreu), um desempregado boêmio e mulherengo; e Hermínio (Flávio São Thiago), advogado que vive de renda, apavorado com a idéia de um dia ter que trabalhar. São os amigos do aperitivo diário no mesmo bar e o universo se concentra na Rua Prado Júnior, em Copacabana - o próprio espaço em que vive, ama e respira o cineasta David Neves.
O tom absolutamente confessional de Neves, um cineasta que sempre mostrou extrema sensibilidade em seus filmes desde sua estréia em "Memória De Helena" (um dos mais belos filmes dos anos 60) confere a "Fulaninha" tanta empatia e comunicação. Sendo um dos mais cariocas filmes já realizados até hoje, torna-se, entretanto, universal - ou ao menos nacional em sua linguagem, seus palavrões, as aventuras amorosas de seus personagens e o riso ou a lágrima que podem aflorar, como no pileque em que Canela agride sua companheira, Sulamita (Zaira Zambelli) e diz aos seus amigos de boemia aquilo que eles não querem reconhecer.
O admirável neste filme é a forma com que David Neves conseguiu conduzir o roteiro, sem cair no melodrama, desenvolvendo bem os personagens, compreendendo-os cada um - como a solidão de Rose (Kátia D'Angelo, ótima), 35 anos, viúva, mãe de Fulaninha, e que após um envolvimento com um marginal, "Dr." Armando (Paulo Villaça), encontra em Bruno uma paixão - por coincidência, o cineasta que tem a fixação na imagem de sua filha, Ana Maria.
Declaradamente apaixonado pelo cinema de Otto Preminger, David Neves faz uma clara citação de seu mais esplendoroso filme, "Bom Dia, Tristeza" (1957, com David Niven e Jean Seberg), do romance de Françoise Sagan e com um longo primeiro plano de Juliette Grecco, musa do existencialismo. Também uma citação de seu próprio filme, "Luz Del Fuego" (1982) e lembranças de Chaplin, os irmãos Marx e Brigitte Bardot no apartamento de Bruno são imagens que conduzem ao universo extremamente visual em que a câmera de 35mm e o vídeo se misturam.
Além do feliz elenco (com toda razão, Flávio São Thiago foi premiado como melhor ator em Gramado-86), o filme traz a mais bela trilha sonora do cinema brasileiro em 1986, trabalho de Sérgio Sarraceni, com citações de músicas incidentais e o tema-título especialmente composto por Paulinho da Viola -, tão belo que fica na memória do espectador (e lamentavelmente inédito em disco).
"Fulaninha", um exemplo do melhor cinema contemporâneo: comportamental, documental, alegre, debochado, crítico - visto de qualquer ângulo um momento encantador, que mereceria ser visto por todos. Um ótimo filme.
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