Uma obra experimental, difícil mas importante
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 28 de dezembro de 1988
"Um filme 100% Brazileiro" é um filme experimental, obra assumidamente vanguardista em seu projeto e que inclui ao lado de muitos títulos do Cinema Novo ou do chamado udegrudi tupiniquim (que o crítico Jairo Ferreira chama de "cinema de invenção") em autênticos miuras, ou sejam, filmes de valor, ambiciosos intelectualmente mas absolutamente intransponíveis para o grande público. Entre outros títulos aos quais poderia ser aproximado estão "O Homem do Pau Brasil" e "Macunaíma", que Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) realizou em torno da Semana de Arte Moderna de 1922 e seus personagens.
Blaise Cendrars (Le Chaux-de-Fonds, Suíça-1887,Paris-1961) - cujo verdadeiro nome era Fréderic-Louis Sauser, foi poeta, romancista, contista, dramaturgo, jornalista e até cineasta - uma espécie de beatnik que muito viajou pelo mundo e que em 1924, dois anos portanto após a Semana de Arte Moderna, veio ao Brasil. E embora a sua grande obra (8 volumes) nunca tenha sido traduzida na maior parte, de sua passagem pelo Brasil resultaram três livros: "A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars", de Alexandre Eulálio Pimenta da Cunha (1928-1988) (edição da Université de Rehennes, 1960); "Blaise Cendrars e os Modernistas" de Aracy Amaral (Martins, 1970) e "ETC - Um Livro 100% Brazileiro" (Editora Perspectiva, 1976), reunindo vários de seus textos, num trabalho apaixonado de Carlos Augusto Calil, na época atuando junto a Fundação de Cineasta Brasileira, quando realizou o média metragem "Acaba de chegar ao Brasil o belo poeta francês Blaise Cendrars". Seis anos depois, na presidência da Embrafilme, Calil (que aliás fez uma das melhores administrações naquela empresa, hoje reconhecida após os desastres que o sucederam) naturalmente apoiou o projeto do cineasta mineiro José Sette (Ponte Nova MG, 1948) em transpor o universo de Cendrars num filme extremamente criativo. Vindo de várias experiências na área de curta e longa-metragem, especialmente documentários (entre eles, "Um Sorriso Por Favor - O Mundo Gráfico de Goeldi", premiado em Brasília, 1981), Sette idealizou seu filme como um ensaio político, colocando em cena a trajetória do poeta Cendrars em contato com três personagens que o impressionara durante sua estada. Sobre dois deles - o coronel Bento, misto de fazendeiro rico, caipira e bárbaro nascido em Mato Grosso e que conheceu Paris tendo-o como anfitrião: e do Lobisomem de Minas (um trabalhador da Rede Ferroviária Oeste Minas, que assassinou um desafeto e comeu o seu coração) pouco se sabe. Mas sobre Febrônio Índio do Brasil, falecido a 27 de agosto de 1984, aos 89 anos, existem maiores informações. Místico (teria criado uma espécie de religião fanática, "Deus Vivo Ainda Que Com o Emprego da Força", cujas iniciais trazia tatuadas no peito - DCVXVF - com a frase "Eis o filho da luz"), este mineiro criolo faria sua carreira criminosa no Rio de Janeiro, onde após assassinar cruelmente várias crianças foi preso e internado em 1927 no Manicômio Judiciário, no qual permaneceria por 57 anos, até a sua morte.
Na época que Cendrars esteve no Brasil falava-se muito de Febrônio ele tentou, inutilmente, entrevistá-lo, não o conseguindo - mas criando um texto a respeito. Sílvio Da-Rin em 1984, pouco tempo antes de Febrônio morrer, realizou um premiado curta a seu respeito com o título de "O Príncipe da Luz" - nome do livro que o assassino escreveu na prisão mas do qual não restou nenhum exemplar, já que a polícia queimou toda a edição.
Com uma liberdade total na reelaboração da trajetória de Cendrars pelo Brasil - fazendo-o chegar num moderno transatlântico, para apenas quatro dias do Carnaval viver sua aventura, os personagens, naturalmente se confundem e há um difícil entendimento da trajetória, com dois atores (Savério Roppa e Paulo César Pereio) interpretando Cendrars e a pontuação de um personagem diabólico, às vezes, travestido de camelô (Wilson Grey, em ótima atuação).
Odete Lara, há anos afastada do cinema, aparece numa personagem mitológica, por poucos minutos na tela - confundindo-se dentro da ficção onírica que deliberadamente o diretor-roteirista José Sette empregou para este filme de invenção e que, em absoluto, pode ser recomendado a quem não esteja disposto e previamente informado de que se trata de uma obra especial. Como disse o pesquisador e montador José Tavares de Barros, sem nenhum compromisso com o chamado "cinemão" é uma experiência avançada e revolucionária, tanto no que diz respeito à releitura da obra de Cendrars, quanto às inúmeras facetas da transposição cinematográfica. Barros, vai mais além:
- "Um filme 100% Brazileiro" é uma espécie de divisor de águas, fazendo ponte entre certas heranças do Cinema Novo e alguns aspectos do cinema de (Julio) Bressane e (Rogério) Sganzerla, mas com total autonomia e independência da parte de seu autor".
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