Um filme 100% brazileiro desperdiçado em Curitiba
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 28 de dezembro de 1988
"É o país da loucura, da loucura das grandezas..." (Blaise Cendrars)
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"Um Filme 100% Brazileiro" (Cine Ritz, 5 sessões... se houver público) é (mais) um exemplo de como uma instituição cultural desperdiça um trabalho que exige um tratamento especial. Realizado há três anos, premiado no II Rio Cine Festival (Rio de Janeiro, agosto de 1986) como "melhor linguagem cinematográfica" e "produção executiva" e, depois, no I Festival de Fortaleza (1986) como "melhor cenografia", este longa-metragem do mineiro José Sette não fez, naturalmente, carreira comercial em nenhuma cidade no qual tenha sido lançado pela Embrafilme, coproduto e distribuidora.
Não é de estranhar que o público permaneça distante. Experimental, hermético, difícil, numa linguagem fragmentada, trata-se de uma obra de autor destinada a ter exibições em circuitos culturais e, sobretudo, ser tratado como um produto especial. Caberia muito mais a Fundação do Cinema Brasileiro a sua distribuição do que a Embrafilme, sabidamente precária na área de comercialização.
Com toda razão o produtor Tarcisio Vidigal, do Grupo Novo de Cinema e TV, de Belo Horizonte, nos ligava antes da estréia em Curitiba, preocupado com sua carreira. Além da dificuldade natural do filme, a época em que foi marcada sua exibição não poderia ser mais desaconselhável: final de ano, múltiplas atrações para o público e ausência daquela faixa que, a custo de muito trabalho, talvez fosse motivado a pagar os Cz$500,00 de ingresso para assisti-lo: os estudantes dos cursos de letras.
Para isto, entretanto, teria que ser feito um trabalho inteligente e competente, procurando-se, por exemplo, uma professora da dimensão cultural de Cassiana Licia Lacerda Carolo, do Departamento de Letras da Universidade Federal do Paraná - sem favor, uma das melhores cabeças de nossa vida inteligente, grande estudiosa e conhecedora do Modernismo no Brasil, para se fazer um trabalho prévio. Valêncio Xavier, idealizador e fundador da Cinemateca do Museu Guido Viaro, hoje fazendo das tripas o coração para tentar movimentar o Museu da Imagem e do Som (por mais de 15 anos, da "Imaginação"...), na qualidade de pesquisador sério, autor de trabalhos relacionados a um dos personagens do filme - o criminoso Febrônio Índio do Brasil (1895-1984), também poderia dar uma contribuição.
Mais importante: embora a projeção de longa nacional libere o cinema de apresentar curtas-metragens, uma obra como "Um Filme 100% Brazileiro" deveria ser antecedido não de um, mas de um média e um curta: "Acaba de Chegar ao Brazil o belo poeta francês Blaise Cendrars", 1976, de Carlos Augusto Calil e "O Príncipe do Fogo", 1986, de Sílvio Da-Rin. A exibição destes dois filmes ajudariam a entender melhor esta obra, aproximando-a de um público que, a seco, reage, naturalmente com irritação: é impossível entender o que o diretor José Sette pretendeu mostrar.
Entretanto "Um Filme 100% Brazileiro" é uma obra bélissima. Uma fotografia caprichada de José de Barros, perfeita cenografia criada pelos artistas plásticos Fernando Tavares, Oswaldo Medeiros e Paulo Giordano, da Oficina Goeldi, de Belo Horizonte e uma trilha sonora de Luiz Eça que, tranquilamente, mereceria ter sido premiado nos festivais em que foi exibido.
Trazendo um personagem real - o poeta francês (de origem suiça) Blaise Cendrars, mas numa ação imaginária, em confronto com um Brasil antropofagicamente diluidor e criativo da linha da Semana de Arte Moderna (1922), eis uma obra que jamais poderia ter um lançamento sem um tratamento especial. Sendo o Cine Ritz uma das 4 salas exploradas pela Fundação Cultural de Curitiba (que aliás, é no Brasil, a mais privilegiada em termos de circuito de cinema), caberia um tratamento realmente cultural para este filme, já que a instituição dispõe de dezenas de funcionários e o seu custo de manutenção é altíssimo (para 1989, o custo-dia da FCC/Secretaria da Cultura estará ao redor de Cz$ 5 milhões, sem contar suplementações e outros recursos, inclusive oriundos da Lei Sarney).
Entretanto, "Um Filme 100% Brazileiro" está sendo exibido praticamente às moscas. Em uma semana, menos de 130 pessoas o assistiram - e na sessão das 22 horas de segunda-feira, 26, havia apenas dois espectadores. Mantido em cartaz - aliás, para supresa geral - dificilmente sua freqüência vai melhorar - afinal, não houve (nem há agora condições de se fazer) nenhum trabalho melhor para seu aproveitamento. Com isto perdem todos: o produtor Tarcisio Vidigal, a Embrafilme, a Fundação Cultural e, principalmente, o público específico que, em outra época - ou mesmo em outra sala (por que não a Cinemateca, dentro de um seminário ou curso?) poderia aproveitar melhor este filme que, ironicamente, chamando-se "100% Brazileiro", é candidato a figurar nos destaques do ano como o de menor público...
LEGENDA FOTO - Num personagem múltiplo, o veterano Wilson Grey é um dos símbolos de "Um filme 100% Brazileiro": uma obra difícil mas para reflexão. Em exibição no Cine Ritz.
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