Bossa Nova
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 23 de janeiro de 1988
Num perdido 22 de um remoto novembro dos idos de 1962, eu, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, embarquei, contra minha vontade, pra Nova Iorque. Manhã branca, leitosa, sem sombra, o velho Boeing 707 correu no mormaço, rugiu sua prepotência, levantou o nariz e mostrou o papo pro vento, e foi galgando a escadaria de ar, as costelas de vento, corcoveando, e lá se foi, comigo dentro, muito a contra-gosto, a Guanabara espelhando lá embaixo. Era a primeira vez que saía do Brasil, já tinha quase 36 anos e me considerava velho. No dia anterior, eu havia dito ao nosso cônsul Mário Dias Costa que não iria de jeito maneira, de jeito nenhum, disse que o concerto no Carnegie Hall seria uma bagunça, um desconcerto, que o navio ia bater no rochedo, que o barco afundaria e... Ele me redargüiu: você é o capitão, você afunda com o barco. Posto em brios, só restou uma saída, o Galeão.
A Bossa Nova toda já estava em Nova Iorque, tinha ido na véspera. Cheguei em cima do laço, a tempo de botar o smoking e entrar no palco e participar do bagunçado concerto que deveria ter se chamado conserto. Em vez de Histórico Concerto deveria de chamar A Estória do Conserto. Mas a Bossa Nova já estava muito bem estabelecida nos Estados Unidos. Stan Getz, saxofone-tenor, acompanhado na guitarra por Charlie Bird já havia gravado o Desafinado e vendido mais de um milhão de discos. Os músicos de jazz, de costa a costa, já haviam começado a gravar massivamente a Bossa Nova, seguidos dos cantores, apesar da má qualidade das versões. O navio da Bossa Nova, quando chegou aqui, já veio carregando no casco muita craca, les uns et les bruitres, os uns e as ostras e no bojo muita carga que não tinha nada a ver. E já chegou muito editada por editores de música brasileiros originários do Leste Europeu, e que cederam as subedições a editores norte-americanos que também vieram do leste e fumavam charutos ainda maiores. E mais tarde editores europeus, japoneses, etc. As letras que botaram nas minhas músicas são lastimáveis! Falavam de coffee and bananas... As minhas melhores canções não mereciam letras tão ruins. Protestei, tentei impedir o massacre e descobri que, por contrato, não tinha direito de opinar, só restava chorar e foi o que fiz no mísero hotel-pardieiro, no cubículo que me coube. Decidi ficar, não bastava chorar sobre o leite derramado, era preciso lutar.
Fizemos ainda um concerto em Washington e depois fomos à recepção na residência do embaixador do Brasil. Casarão lindo, piano de causa, presentes o embaixador, o dr. Roberto Campos, o staff do presidente John Kennedy e uma secretária americana muito da bonitinha. Acabamos tocando, cantando, comendo, bebendo e dançando. Tava bom, voltamos para Nova Iorque, e fizemos mais um concerto no Village Vanguard. Nos intervalos aparecia um americano narigudo que contava piadas, o público ria e a gente, nos bastidores, não entendia.
Este americano era o Woody Allen, em 1962, um desconhecido.
Aí acabou nosso compromisso com o Itamaraty e a Bossa Nova voltou para o Brasil. Frio cão. Vou ficar. João Gilberto, Sérgio Ricardo, Milton Banana também ficaram no Hotel Diplomat. Carlos Lyra ficou em outro. Outros, não sei. Em dezembro caiu a primeira neve.
* [?] Querido amigo, homem de alta compreensão.
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