Documentário de um casamento
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 05 de novembro de 1975
"Cenas de um Casamento" (cine Plaza, sessões às 12, 17 e 20,00 horas), de certa forma constitui um encerramento do ciclo de filmes sobre os sentimentos que o sueco Ingmar Bergman desenvolve há 3 décadas. Pois, neste seu 45º filme - produzido originalmente, em 6 partes, para a televisão de seu país - Bergman chega ao ponto máximo da abertura de espírito e, paradoxalmente, num filme-depoimento, em que dois personagens praticamente dialogam durante 168 minutos, ruminando uma dialética minuciosa, de rostos enormes aparecendo em êxtase ou desespero, "para contar uma história banal e cotidiana - no entanto, sem solução", como acentuou a crítica Bruna Becherucci.
O sucesso que "Scener ur ett Aktenskap", em sua versão para o cinema, alcançou na Europa, Estados Unidos e, agora, na América do Sul, vem provar, mais uma vez, que tratando de sentimentos e incertezas humanas, Bergman consegue ser universal, atingindo pessoas dos mais diversos temperamentos e latitudes. Qualquer casal consciente, sensível e inteligente, ao menos em um momento, se encontrará um pouco na história de Johann (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullman); professor universitário, John resolve, aos 42 anos, abandonar Marianne, de 35 anos, advogada, mãe de duas garotas. Mas esta decisão constitui justamente o centro de uma gangora, antecedida, nas primeiras [seqüências], de uma visão feliz do casal - 10 anos de casamento, tranqüilidade financeira (emocional ?). Depois da separação, os reencontros, a agressão dois anos depois, na assinatura do divórcio, até uma nova aproximação, na data do 20º aniversário do casamento. Todas - absolutamente, todas as [seqüências] e diálogos de Bergman foram concebidas de uma forma notavelmente inteligente e sincera, em que o espectador lúcido não sente sequer o fato de ver imagens quase fixas e total simplicidade de ambientes - ao contrário da obra-prima anterior de Bergman, "Gritos e Sussurros", que trouxe um dos mais impressionantes decors da história do cinema.
Se grande parte da obra de Bergman prece, ao espectador menos familiarizado com sua linguagem, difícil e hermética, "Cenas de um Casamento" é um filme linear. Os seis episódios - "Inocência e Pânico", "A Arte de Varrer Embaixo do Tapete", "Paula", "O Vale das Lágrimas", "Os Analfabetos" e "No Meio da Noite, Numa Casa Escura", apresentados ao longo de duas horas e quarenta minutos de projeção - são a colocação do amor & desamor, das dúvidas e das certezas, das alegrias & tristezas, de um casal da classe média - que na Suécia, como em qualquer outro país (considerando-se uma comparação do mesmo nível sócio-econômico) podem enfrentar, em certos momentos, as mesmas situações. Só faz deste filme de Bergman um dos mais importantes documentários de nossa época - pois sem dramas(lhões), extraindo de seus intérpretes o máximo (e creio que depois deste filme, ninguém põe em dúvida o fato de Liv Ulmann merecer a classificação de melhor atriz do cinema contemporâneo), Bergman mantém-se neste seu 45º filme, fiel (como Buñnuel ou Felline, em suas respectivas fixações) a uma linha da dissecação da alma & dos sentimentos, filmando a dor e o sofrimento - mas com toda a lucidez. Sem investir contra o casamento - ao contrário, valorizando os sentimentos e a afirmação de que até em samba já foi cantada pelo gaúcho Lupiscínio Rodrigues ("È melhor brigar juntos /Do que chorar separados"), Bergman realizou em "Cenas de um Casamento" o mais belo e honesto filme dos últimos anos. Um filme que deveria ter uma censura diferente: exclusivo para casais acima dos 30 anos.
LEGENDA : Liv x Erland: Guerra & Paz (conjugal)
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