Marcha Ranchos ou de quando a música carnavalesca era poesia
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 25 de fevereiro de 1990
O samba é a identificação musical do Carnaval mas são as marchinhas - ah! As marchinhas - que mais são lembradas nos bailes. Os sambas-de-enredo, uma novidade em termos de marketing carnavalesco nos últimos 20 anos, apesar da maciça promoção, ainda não chegam a serem decoradas pelos foliões - exceto os cariocas, mais fanáticos - havendo inclusive curiosos casos de próprios integrantes de escolas-de-samba que às vezes não conseguem guardar toda a extensão dos sambas-de-enredo de suas escolas, quilométricos e confusos até os anos 80, ao ponto de terem inspirado ao irreverente Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto, 1923-1968) o seu maior sucesso, "Samba do Crioulo Doido", lançado pelo Quarteto em Cy em 1968.
Hoje, quando novos ritmos se carnavalizam tribalmente - do afro-reggae e lambada - e a música carnavalesca, em sua essência, há muito desapareceu, nostalgicamente os cinquentões (e quarentões) recordam os velhos Carnavais com o ritmo mais dolente que, em grandes momentos, identifica também esta festa: a marcha-rancho.
Assim como os ranchos cariocas - uma forma muito especial de espetáculo-entretenimento de rua, com a participação de grupos organizados que antecipavam, de certa forma, o luxo e a riqueza das escolas-empresas da atualidade, está desaparecendo, as marchas-ranchos também são, pouco a pouco, esquecidas como gênero - embora o repertório do gênero mantenha-se como um verdadeiro tesouro do que de melhor existe no cancioneiro verde-amarelo.
- "Marcha-Rancho é covardia!", nos dizia, há quase 20 anos o poeta Vinícius de Moraes, ele próprio um apaixonado pelo gênero - ao qual deixou contribuições magníficas em parcerias com Carlinhos Lira ("Marcha da Quarta-Feira de Cinzas"), Ari Barroso ("Rancho das Namoradas") e até Bach ("Rancho das Flores").
O Poeta referia-se ao fato da marcha-rancho unir a uma necessária estruturação poética com harmonias belíssimas e ter uma forma altamente contável - servindo assim como um belíssimo contorno também para o Carnaval, ao menos em seus versos mais fáceis.
Ao longo da história da MPB a marcha-rancho tem resultado em momentos magníficos, de intensa poesia e que o Brasil todo canta com emoção. Um paranaense, Paulo (Gurgel Valente do Amaral) Soledade, parnanguara do dia 29 de junho de 1919 - e cujos 70 anos foram criminosamente esquecidos (conforme aqui denunciamos no ano passado), é autor de duas das mais belas marchas-ranchos de todos os tempos.
Em 1952, em parceria com Marino (do Espírito Santo) Pinto (1916-1965), Paulo compôs uma obra-prima que todos conhecem: "Estrela do Mar", com achados poéticos que raramente se ouve:
Um pequenino grão-de-areia
que era um pobre sonhador
olhando o céu viu uma estrela
imaginou coisas de amor
Passaram anos, muitos anos
Ela no céu, ele no mar
Dizem que nunca o pobrezinho
pôde com ela encontrar
Se houve ou se não houve alguma coisa entre eles dois
ninguém soube até hoje explicar
O que há de verdade
é que depois, muito depois
Apareceu a Estrela do Mar.
Nove anos depois, Paulinho Soledade voltaria com a mais conhecida (e emotiva, de certa forma biográfica) obra: "Estão Voltando as Flores", gravada em 1961 e que se tornaria um hino do otimismo e da esperança, em seu refrão que até para campanhas publicitárias tem sido utilizada (sem se dar o devido crédito ao autor).
Vê, estão voltando as flores
Vê, como é bonita a vida
Vê, na esperança ainda.
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