O som do Carnaval (II) - Bloch carnavalesco e a marcha da Constituinte
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 05 de fevereiro de 1986
Destinada a estimular os compositores a fazerem músicas para o Carnaval a promoção "Canta Meu Povo", organizada pela Radiobrás, com apoio da Riotur, Funteve e Funarte, realizada entre 9 de setembro a 21 de outubro de 1985, no Circo Voador, no Rio de Janeiro, foi mais uma frustração. De centenas de músicas inscritas, a comissão julgadora teve dificuldades em selecionar as 12 que ganharam o direito de serem gravadas num lp da Sigem, distribuído pela RGE - e que, infelizmente, está tendo pouquíssima repercussão.
Talvez a única curiosidade deste festival foi a de mostrar um lado inesperado do poderoso empresário das comunicações, Adolpho Bloch, presidente das organizações Manchete. Em parceria com o conhecido jornalista e romancista, Carlos Heitor Cony - e mais a colaboração musical do maestro Carlos Cruz, Bloch e Cony são autores de uma marchinha, "Rainha de Sabá", gravada pela veteraníssima Emilinha Boba. Além de abrir o lado A do lp "Canta Meu Povo", Emilinha ganhou também um compacto simples, no qual além de "Rainha de Sabá", está o frevo "Ai Meus Sais", dos mesmos autores. Uma letra das mais ingênuas, naturalmente:
O garoto que eu tanto amava/ O garoto a quem eu tanto dava
Sumiu da circulação/ E me deixou na mão
Não sei por que levei o fora/ Eu dava tudo na mesma hora
Casa, comida, roupa lavada
E ele me deixou sem nada;
Ai meus sais/ Ai meus sais;
Botei anúncio em todos os jornais
Procurei, procurei cada vez mais (ai meus sais!)
Até que um dia encontrei/ O meu garoto num baile gay!
Igualmente ingênua - mas como música de Carnaval deve ser simples para ser cantada - é "Rainha de Sabá".
É carnaval/ Quero pular/ Com as filhas da Rainha de Sabá
Ai Salomão!/ Salomão!/ Tinha mulheres à beça
Mas preferiu a Rainha de Sabá/ Que era mulata
Ai Salomão!/ Salomão!
Três mil anos depois/ Tem mulatas na terrinha
Aguardando a sua vez/ De mandar uma Brasinha...
xxx
Mangueira, tão cantada em clássicos sambas, cuja Escola de Samba tem um passado de glórias, ganhou um belo samba de Paulo Soledade, 66 anos, paranaense de Paranaguá. De todas as músicas deste "Canta Meu Povo", sem dúvida a de Soledade, autor de clássicos como "Zum Zum" e "Estão Voltando as Flores", é a letra mais bem estruturada com bonitas imagens poéticas:
Lá no horizonte uma faixa cor de rosa
Em cima do mar, do verde mar
É uma beleza/ Veja a natureza
Como se vestiu faceira
Com manto cor de rosa e a saia de mangueira
Não. Mangueira não é só cabrocha e empolgação
Não. Nem só passista com o samba de pé no chão
É sim, o sentimento deste povo nobre
Que conta a alegria do pobre no batuque do coração.
Um compositor como Ricardo Villas, ex-Momento 4 e que passou mais de 10 anos no exílio, tenta, com um frevo, resgatar a ironia de antigos Carnavais. Em "Golpe do Abraço", diz que "O golpe do abraço que você me envolveu/ Não sabia quem você era/ Nem você quem era eu".
Agora sei que eu fui enganado/ O seu abraço me parou no ar
A sua vida é cheia de drama/ Mas o seu sorriso faz o drama de
Que frracassou/ Eu pensava que esse abraço era de amor.
xxx
Talvez a maior característica da música carnavalesca tenha sido sempre a ironia, a sátira, a gozação. A capacidade dos compositores em transmitirem de forma gaiata e comunicativa os fatos do momento. Este ano, das raras músicas que surgiram, a única marchinha com este espírito foi "Olho na Constituinte", de Reginaldo Bessa, compositor talentoso, dois lps gravados, mas que esquecido dos meios de divulgação sobrevive fazendo jingles publicitários. Sua marchinha, se tivesse uma boa divulgação poderia estourar:
Inconstitucionalissimamente!
Disseram que a gente não viu
Agora o negócio é o seguinte:
Olho na Constituinte
A Máfia está farta de embromação/ Era a nova carta sem armação
Bilhete azul da corrupção
Assinada em baixo pelo povão
Chega de prato feito!
Chega de arrumação
O povo quer participação
Eu e você queremos saber
O que vão fazer na Constituinte.
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