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Aramis

A morte do operário

Sobre a imagem congelada do operário Mário (Nelson Xavier) tomando um café no alvorecer de um novo dia, na última cena de "A Queda" (Cine Lido, até amanhã 5 sessões) aparece abaixo da palavra ("Fim" a frase "Este filme foi rodado na cidade do Rio de Janeiro - 1976". Mais do que uma simples informação adicional, adquire um sentido intrínseco para esta obra de rara qualidade na produção cinematográfica que estamos assistindo agora, em 1978: "A Queda" é, antes de tudo, um filme documental (sem ser documentário) dos bastidores de uma grande obra - no caso o Metropolitano do Rio de Janeiro. Rodado com poucos recursos de produção, em tempo recorde, proibido pela Censura e só liberado após ter obtido um dos Ursos de Prata no Festival de Cinema de Berlim, no ano passado, "A Queda" é, de certa forma, uma obra tão vigorosa quanto foi, há 24 anos passados, "Rio, 40 Graus" e, há 14 anos, "Vidas Secas", ambas de Nelson Pereira dos Santos. O moçambiquense Ruy Guerra, 47 anos, 26 de cinema, buscou a síntese na realização deste seu 4ª longa-metragem, retomando três personagens de "Os Fuzis" - seu segundo longa metragem, rodando em 1964, no Nordeste - e colocados, agora, na realidade urbana do Rio de Janeiro, 1976. "Os Fuzis" - com várias seqüências aproveitadas em forma de "flash Back" no desenrolar de "A Queda" - contava a estória de um grupo de soldados incumbidos de proteger um armazém numa pequena cidade do agreste baiano, sitiada por milhares de pessoas famintas. Foi, na época, um filme de extrema força, que mesmo sem ter a promoção que a fita anterior de Ruy Guerra, "Os Cafajestes" (1962) havia obtido, foi suficiente para inclui-lo como um dos mais representativos cineastas integrados ao chamado "Cinema Novo". Inquieto e dispersivo, atuando também na música como letrista (com parceiros notáveis, como Carlos Lyra, Chico Buarque, Milton Nascimento, Francis Hime, entre outros). Guerra desenvolveria uma carreira irregular: na França, em 67, fez um dos episódios de "Longe do Vietnã", que acabaria sendo cortado na montagem final; em 69, realizou "Sweet Hunters", com Sterling Hayden e Susan Strassberg - nunca exibido no Brasil. Só em 70, de volta ao nosso País, faria um dos filmes mais polêmicos da década - "Os Deus e Os Mortos", até hoje obra incompreendida e maldita (Paulo José, ator e produtor, passou 5 anos trabalhando na Rede Globo para conseguir pagar o prejuízo desta fita). Afora o episódio de "Loin du Vietnam", que ficou inédito, Ruy Guerra teve dois outros projetos inacabados: o [documentário] "Orós" (1960) e "Cavalo de Oxumaré" (61), para o qual a atriz Irma Alvarez chegou a raspar a cabeça. É necessário esta recapitulação filmográfica sobre Ruy Guerra para entender melhor a importância de um filme como "A Queda", cujo lançamento em Curitiba foi feito sem qualquer promoção e que resultou em total fracasso de bilheteria. Trata-se de um filme político, social, incomodativo e inquietante. Longe assim do colorido ufanista de "Batalha de Guararapes" ou do humor pornochanchada de "O Homem de Itu" e muito menos distante do consumismo fácil de "Dona Flor e Seus Dois Maridos". Em compensação, "A Queda" tem o gosto do real, vai buscar nos rostos anônimos dos operários das obras civis do Metrô, no Rio de Janeiro, uma realidade muito próxima de todos nós, desde que saibamos ver algo mais do que aquilo que aparece feitinho para consumo nas imagens da televisão. A estória é simples, linear: José (Hugo Carvana) é soldador e cai do andaime onde trabalhava sem segurança. Morre e seu velho amigo, Mário - seu ex-colega de farda no Nordeste (episódio de "Os Fuzis", lembrando em várias [seqüências]) preocupa-se em que a viúva, Lindalva (Maria Silvia) não seja enganada pela empreiteira. Mas o poder financeiro, aliado aos interesses do sogro de Mario, o subempreiteiro Salatiel (Lima Duarte) acabam vencendo; o advogado (Fernando Peixoto) é corrompido, o jornal que no início denuncia os fatos e acaba se calando e Mário acaba sozinho, afastado até de sua mulher, [Laura] (Isabel Ribeiro). Trabalhando com poucos personagens, desenvolvendo uma estória com muito de realidade e pouco de ficção, Ruy Guerra e Nelson Xavier (além de ator-produtor, participou também na realização, não sabendo-se, entretanto, até onde foi sua contribuição) propõe um cinema voltado a documentar o trabalho pesado, dos homens que garantem a infra-estrutura das grandes obras. Pode-se mesmo dizer que "A Queda" é um dos primeiros filmes a colocar o operário da construção civil no cinema, sem demagogia, sem a picaretagem colorida dos documentários (sic) de Jean Manzon ou Izaac Rosenberg. Ao contrário, muitas das entrevistas com operários que entremeiam certas [seqüências] parecem ter sido feitas autenticamente, com operários do Metrô - obra difícil e que vem sendo marcada por muitos conflitos trabalhistas, conforme os jornais tem denunciado (acusações contra falta de segurança, péssima alimentação, acomodações subumanas etc.). Numa das [seqüências] mais irônicas, Salatiel leva Mário ao apartamento de cobertura que está comprando de lá fala sobre a importância do "boom" da indústria da construção civil, das possibilitadas ilimitadas abertas a quem deseja trabalhar, procurando convencer o operário de desistir de sua luta em favor dos direitos da viúva do colega morto. Do alto do edifício, o diálogo dos dois lembra aqueles versos antológicos de Vinícius de Moraes, em "Operário em Construção" - por si só, uma colocação simbólica do demônio tentando a Cristo. "Sentindo que a violência/Não dobraria o operário/Um dia tentou o patrão/ - Dobrá-lo de modo vário/De sorte que o foi levando/Ao alto da construção/É num momento de tempo/Mostrou-lhe toda a região/E apontando-a ao operário/Fez-lhe esta declaração: - Dar-te-ei todo este poder/E a sua satisfação/Porque a mim me foi entregue/E dou-o a quem bem quiser/Dou-te tempo de lazer/Dou-te tempo de mulher/Portanto, tudo o que vês/Será teu se me adorares/E, aonde mais, se abandonares/O que te faz dizer não". Do release promocional distribuído pela Embrafilme sobre este filme, um tópico merece ser transcrito: "Se "Os Fuzis" representava uma aventura de farda diante da inutilidade da morte, "A Queda" sublinha a mesma inutilidade numa outra desventura. O que foi feito de José, de Mário, de Pedro, aqueles três antigos companheiros no agreste [baiano]? É a partir desta pergunta que se desenvolve em três níveis o filme de Ruy Guerra e Nelson Xavier. No preto e branco do passado narrado n'"OS Fuzis"; no discurso fechado do poder imobilizado pela fotografia e na luta pela vida; em seus movimentos e cores reais": A abertura do filme è com cenas chocantes feitas num matadouro: o abate de um boi por métodos [ainda] cruéis, quase que numa referência a imagem final de "Os Fuzis", quando a população faminta acaba abatendo e comendo a carne crua de um "boi sagrado", misticamente adorado pelos camponeses. Assim, procura-se marcar uma analogia entre as sub-condições que a Câmara vê num matadouro e a subvida de uma legião de operários da construção civil. Infelizmente, "A Queda" não é um filme popular, de fácil consumo pelas platéias menos preparadas: há longos monólogos, o som é imperfeito e mesmo certas situações podem parecer confusas ao espectador menos atento. Tem, entretanto, a grandeza do documental, do registro de uma época, de uma posição assumida, com coragem e personalidade, por realizadores que sentem a necessidade de fazer mais do que um simples entretenimento. Uma obra brasileira, incômoda, chocante - como a própria realidade. Mas que fazer, se a vida é assim ? No final, entretanto, há esperança: um novo dia nasce para Mário, um operário em construção.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
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Tablóide
4
03/10/1978

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