A noite em que Gigli cantou no Cine Ópera
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 20 de março de 1990
"Há os que nascem com uma estrela na testa.
Há os que trazem outro sinal visível do
destino. Gigli nasceu com um rouxinol na
garganta".
(Raffaello de Rensis, no início da biografia
de 208 páginas - "Gigli, o cantor do povo",
edição Saraiva, 1953).
Se Humberto Lavalle ou Aluísio Finzetto estivessem vivos, por certo que a data não passaria em brancas nuvens radiofônicas. Mesmo que já aposentados e não existindo mais a Rádio Guairacá, a voz nativa da terra dos Pinheirais - nas quais marcaram uma das grandes fases da comunicação no Paraná - estes dois giglistas apaixonados fariam com que ao menos a Rádio Estadual do Paraná (fundada graças ao idealismo de Finzetto) fizesse um especial sobre os 100 anos de nascimento daquele que é considerado o segundo maior tenor de todos os tempos - já que a palma principal, para os ortodoxos do canto lírico, continua para o Grande Caruso (Enrico Caruso, Nápoles 1873-1921).
Assim, sem qualquer comemoração em termos locais, o centenário de nascimento de Gigli, será lembrado apenas por alguns apaixonados pela voz do grande artista italiano, que reunidos na residência do empresário e pesquisador Joel Rondinelli Mendes, 57 anos, assistirão, em vídeo, nova preciosidade que o colecionador recebeu há poucos dias de Nova York - um dos filmes que ele fez para a produtora alemã UFA nos anos 30.
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Outros giglistas mais idosos poderão recordar, com emoção, aquela noite inesquecível em que Gigli fez um recital no então luxuoso Cine Ópera: 16 de outubro de 1951. Entre outros, o agrônomo Carlos Meisner Osório - dono da mais sofisticada coleção de clássicos do Paraná (e a melhor aparelhagem de som aqui existente), o advogado Adir Nemer, o securitário Medoro Belotti, o economista Zeigler Lins, o industrial José Eduardo Todeschini - todos na faixa acima dos 50 anos, estiveram entre os espectadores que lotaram o cine Ópera (Avenida Luiz Xavier, no prédio hoje ocupado pela Mesbla), no qual Gigli, acompanhado ao piano pelo maestro Enrico Sivieri - num instrumento Essenfelder, cedido pela rádio Guairacá - apresentou 15 números, dois a mais do que constava do programa oficial. Abrindo com uma furtiva lágrima de "Elixir d'amore" de Donizetti, o repertório incluiu "Plisir d'amour" (Martini), "Tristesse" (Chopin), "Occhi di fata" (Deuza) e, encerrando a primeira parte, quando nasceste tu de "Lo Schiavo" de Carlos Gomes.
Na segunda-feira, quatro outros aplaudidos números: "M'appari de "Martha" (Flotow), "Mille Cherubini in coro" (Schubert), "Il Sogno" (Massant), "L'escatori di perle" (Bizet). Finalmente, três temas mais populares - "Canzone Siciliana" (Gibilaro), "Se vuoi goder la vita" e "Mamma" (Bixio), para o gran finale oficial, e lucevan le stelle da ópera "Tosca" (Puccini). Os dois números extras, não foram lembrados por Joel Mendes, pesquisador da música lírica no Paraná - e que está sendo estimulado pelos amigos a escrever um livro a respeito mas que não assistiu a apresentação de Gigli em Curitiba. Encontrava-se em São Paulo e o aplaudiu em seu recital no Teatro Odeon.
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A vinda de Gigli a Curitiba - artista que desde 1920 já havia feito várias temporadas no Rio e São Paulo - deveu-se basicamente a Humberto Lavalle (4-2-1908/11/09/1987), cantor lírico, publicitário, radialista e, sobretudo um animador cultural. Diretor comercial da rádio Guairacá - inaugurada em 1948 e que vivia seu período de glória - encontrou em outro fanático pelo canto lírico, Aluísio Finzetto (1914-1974), o apoio para dar condições a que o empresário Emílio Billoro, que o trazia ao Brasil, inclusive, pela primeira (e única) vez, Curitiba em seu roteiro. O professor David Carneiro, proprietário na época do Cine Ópera (que havia sido inaugurado em julho de 1943, com "Tudo Isto e o Céu Também) apoiou a idéia e cedeu o espaço a um preço razoável. A imprensa local - especialmente o O Estado do Paraná (que estava circulando desde 17 de julho daquele ano) deu grande apoio e assim o cine Ópera, então o mais luxuoso de Curitiba, recebeu um público especial. Seis empresas comerciais colaboraram na confecção do modesto programa distribuído graciosamente: imobiliária Carmo, Ótica Luz, Casa Miranda (calçados), Casa Colosso (que aproveitava para anunciar suas "famosas cestas de natal e fim de ano"), Santos & Irmão (que representava aqui a RCA Victor, gravadora que lançava os discos de Gigli) e a Aeromar Turismo.
Lavalle e Finzetto decidiram que a passagem de Gigli não poderia passar sem um registro histórico. Assim, mandaram confeccionar uma placa de bronze, descerrada no hall do cinema, após um entusiástico discurso de Finzetto - fato registrado por O Estado no dia seguinte.
Quando o cine Ópera fechou há 14 anos, alertamos aqui para a importância de que não só aquela placa - mas outras que haviam marcado grandes eventos realizados no cine Ópera (I Festival de Cinema de Curitiba, 1956; três edições do Tribunascope etc) fossem preservadas. Nada adiantou e até hoje ninguém sabe se alguém guardou a placa ou se as mesmas foram jogadas no lixo.
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Lavalle e Finzetto deram tanta atenção a vinda de Gigli que foram esperá-lo em Pedra Preta, na chamada rodovia Estrada da Ribeira (hoje BR-469), na época a única ligação com São Paulo. Odiando embarcar em aviões, Gigli preferiu enfrentar uma cansativa viagem de 14 horas do que entrar num avião - e assim o conde Francisco Matarazzo, seu grande amigo e admirador, colocou a disposição seu Mercedes-Benz, com motorista, para trazê-lo a Curitiba.
Simpático e afável - recordam os que estiveram com Gigli há 39 anos - chegou bem disposto. Ficou hospedado no Grande Hotel Moderno (então o estabelecimento cinco estrelas de Curitiba, na Rua XV de Novembro, onde hoje existe um inexpressivo hotel da cadeia Candeias) e por duas vezes fez refeições no restaurante Bella Napoli, de um italiano apaixonadíssimo por óperas, que fez questão de recepcioná-lo com um jantar após a sua apresentação no cine Ópera.
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Como tinha compromissos artísticos no dia 18 em São Paulo, Gigli saiu cedo, na manhã de 17 de outubro para São Paulo.
Só que o motorista do Mercedes que o havia trazido enganou-se ao sair de Curitiba e acabou dirigindo-se a Paranaguá. O atraso o fez retornar a cidade e, mesmo com todo seu temor por embarcar em avião, apanhar um aparelho da Real Aerovias, no aeroporto Afonso Pena, que, milagrosamente, saiu no horário suficiente para chegar a tempo em São Paulo.
Lavalle, Finzetto e os outros amigos que haviam promovido a sua vinda deram toda atenção e o acompanharam até o aeroporto. Nas despedidas, Lavalle teria combinado que, em seu próximo retorno ao Brasil, ele voltaria a Curitiba.
O que nunca aconteceu. Seis anos depois, em 30 de novembro de 1957, morria, aos 67 anos, em Roma, em conseqüência de uma pneumonia bronquial.
LEGENDA FOTO - Bienamino Gigli - na foto, em sua juventude (como "Turiddu" em "Cavalleria Rusticana"), nascia há 100 anos. Em 16 de outubro de 1951 cantou no Cine Ópera.
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