O melhor do blues (I) - Uma antologia com mestres do piano
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 12 de julho de 1987
O franco-argelino-carioca André Midani é uma espécie de cruza do rei Midas com Robin Wood. Ex-baterista de jazz, Midani tornou-se em pouco mais de duas décadas do Brasil, um dos tycoons da indústria fonográfica brasileira, partindo de um modesto selo da antiga Odeon - a Imperial (que fazia vendas domiciliares, na qual aliás, começou sua carreira o eficiente Roberto Berro, hoje o homem da Polygram no Paraná), até a presidência da WEA. Com senso de mercado, Midani sempre buscou a faixa jovem, inundando a praça de conjuntos de rock & modismos.
Entretanto, ao lado deste toque de Midas adolescente, há também um pouco do personagem da floresta de Sherwood: os lucros que o mais supérfluo / descartável (e até irritante) pop garantem, permitem edições de álbuns não comerciais, preenchendo espaços. Assim é que a WEA lança agora um álbum duplo de um excelente violonista (André Gerassai), traz novos discos de jazz e, especialmente, coloca ao alcance dos brasileiros o melhor do blues, com quatro volumes duplos.
Os dois primeiros - "Piano" e "Guitar - saíram no final de junho e os outros dois devem estar nas lojas dentro de dez dias: "Vocalists" e "Chicago". Paralelamente, a Polygram promete editar um elepê de Roberto Grey, 33 anos, jovem cantor e guitarrista que conseguiu fazer o blues voltar às paradas.
PARENTE DO JAZZ - O Blues é pouco conhecido e editado no Brasil, mas tem nos EUA discografia imensa. Na Europa, há um culto aos grandes nomes deste ritmo e em Londres, há dez anos, conhecemos pelo menos três lojas que só vendiam discos de "blues singers", a maioria totalmente desconhecida por aqui, já que há inúmeros selos independentes, as margens do Rio Mississipi, que produzem os discos de cantores e instrumentistas incríveis - mas que só saem para endereços específicos.
Portanto, ao ter a coragem de lançar quatro álbuns duplos de blues no Brasil, Midani possibilita que ao menos alguns dos grandes nomes cheguem até aqui. Afinal, são 60 músicos que assinam as 103 faixas contidas nos oito elepês programados, sem contar os "bluesmen" de acompanhamento.
Uma prova de que o público brasileiro começa a entender e amar o blues é o fato de que no ano passado, a série de edições que a CBS prensou para a cadeia Breno Rossi, incluiu quatro álbuns duplos com quase toda a obra da maior das cantoras do gênero, Bessie Smith (1895-1937), esgotou em poucas semanas.
O jornalista Carlos Callado ("Folha de São Paulo", 21/06/87), lembrou com precisão que os álbuns "Atlantic Blues: Piano" mostram com clareza como o jazz e o rock são parentes de uma mesma família musical. É o que se sente nas várias gravações de "Boogie Woogie" (um estilo pianístico de blues tocado principalmente em palcos de teatros, botequins e outros locais mais privados e descontraídos, desde o final do século passado).
Três dos mais importantes pianistas deste estilo estão nesta antologia. Jimmy Yance (1894-1951), Meade Lux Lewis (1904-1964) e Pete Johnson (1904-1967), este com duas canções de Joe Turner, outro lendário blues-writer.
De todos os nomes, o mais conhecido é Ray Charles (Albany, Georgia, 23/09/1932), mas de uma fase jovem, quando ainda não era famoso cantor. Trata-se de uma gravação, feita há 32 anos, com o boogie "Low Society".
No total, os dois discos trazem treze expressivos pianistas da história do blues: além de quatro faixas com Yancey e Johnson, as três com Meade Lux Lewis (incluindo "Honky Tonk Train Blues"), temos outros momentos especiais: Little Brother Montgomery (1907-1985), que marcou época nos anos 30 em Chicago e New Orleans, comparece com "Talking Blues", num registro de 1951, no qual também é cantor.
Jack Dupree, 77 anos, americano radicado na França, em 1980 foi uma das grandes atrações do 2º Festival Internacional de Jazz Montreaux São Paulo. Chamado de "Champion", Dupree é um dos últimos pianistas de blues das "barrel houses" e está neste álbum com três músicas de linhas bem diferentes, gravadas em 1958.
O chamado "Professor Longhair" (1919-1980) foi também representante do "Boogie Woogie", mas acrescentou a seu estilo acentos rítmicos caribenhos. Nos anos 70 foi "descoberto" por um público maior e passou a ser cultuado como um dos grandes pioneiros do blues de New Orleans. Atuando também como vocalista, tem duas músicas, gravadas em 1953, neste álbum: "Ball the Wall" e "Tipitina".
Vann "Piano Man" Walls, 77 anos, é pouquíssimo conhecido, mesmo nos círculos "bluesy" por ter sempre atuado mais como acompanhante e morado fora dos grandes centros musicais (vive hoje em Montreal, Canadá). Mas as duas músicas que estão no álbum ("Blue Sonder", "After Midnight"), registros de 1952, revelam este extraordinário "piano man".
Jay McShann, 79 anos, marcou época em Kansas City nos anos 30, liderando uma banda de "Jump Blues", na qual, durante quatro anos, tocava um jovem chamado Charlie Parker (1920-1955), que ali começou a executar saxofone quando tinha 17 anos. McShann está no álbum com duas músicas gravadas há dez anos, numa delas, "Fore Day Rider", mostrando também seus dotes de vocalista.
Floyd Dixon, 59 anos, é um dos mais jovens remanescentes, desta antologia. Nos anos 50 foi popular, fazendo já do blues uma mostra próxima do "rhythm and blues" e do "rock and roll", que surgiriam naquela década para mudar a cena musical americana. Como pianista e vocalista, Dixon está no álbum com "Hey Batender" e "Flodey's Blues" em registros de 1954.
Amos Milburn (1927-1980) comparece com "After Hours Blues", tema tradicional em registro de 1949, com o guitarrista Texas Johnny Brown. Doctor John, 46 anos - o caçula da seleção - é o chamado líder do "voodo rock", ou seja, uma espécie de macumbeiro/roqueiro, mas com raízes, pianista e cantor, do blues vibrante de New Orleans, cidade que por sua população negra sempre cultuou o misticismo africano. Ele mostra isto em "Junco Partner", gravação de 1972.
Finalmente, William Maron (1925-1985), representante do blues urbano de Chicago (que terá um álbum específico). "I Don't Know", em gravação inédita de 1976 conta com a participação até do "Rolling Stone" Mick Jagger na harmônica de boca.
O blues - seu significado, sua influência na guitarra, merece um registro mais extenso. Que fica para a próxima semana.
Enviar novo comentário