Premê e Lira, a música popular com bom humor
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 06 de dezembro de 1986
A música brasileira sempre soube cultivar o humor. Hoje, mais do que nunca, tanto roqueiros como outras tendências buscam a linguagem descontraída para fazer os ouvintes receberem com alegria suas mensagens sonoras. Mas há também os que desejam ficar mais sérios, como o ex-Miquinho Amestrado Leo Jaime.
Um tema fascinante a espera de quem queira desenvolvê-lo como um ensaio ou mesmo dissertação de mestrado: o humor na música brasileira. Afinal, além do Samba, Carnaval e Cachaça, o brasileiro sempre gostou do riso e um mergulho em nossa MPB revelará centenas de exemplos em diferentes estilos. Portanto, aquilo que os roqueiros estão explorando hoje, com muito mais malícia e liberdade, é claro! (Afinal, os tempos são outros) não chega a constituir novidade. É apenas a reciclagem do que se fazia há 60, 40 ou 30 anos passados.
Só que se os Demônios da Garoa, ao fazerem uma versão pornô de "Xótis das Meninas" (Luiz Gonzaga/Zé Dantas, 1953), tiveram que inaugurar o chamado "78 rpm clandestino". Hoje, a pornomúsica bem mais explícita (e de menor nível) apenas é vetada para divulgação pública.
A LIRA HUMORADA
Para não mergulhar em caminhos históricos - impossível, aliás de serem sintetizados num rápido registro jornalístico - vamos lembrar que há 8 anos, lá por 1978, quando cinco idealistas - Wilson Souto Jr. O Gordo (hoje diretor artístico da Continental), o alagoano Fernando Alexandre (jornalista, colaborador de O Estado, assessor da Secretaria Municipal de Turismo), o cearense Ribamar Castro, Francisco Caldeira e Plínio Chaminé - fundaram o Lira paulistana, em São Paulo, estavam, indiretamente, dando início a um movimento musical que, embora curto, proporcionou a revelação de muitos talentos. E entre os grupos que se reuniram em torno do pequeno espaço do Lira, estavam os grupos vocais-instrumentais Premeditando o Breque, Língua de Trapo e Rumo. Iniciando-se com discos independentes, trazendo a ironia em suas composições, propondo uma desmistificação instrumental - meio na linha do que o americano Spike Jones já fazia nos anos 50 (e que os argentinos Luthiers desenvolveram nas décadas de 60/70), estes três conjuntos conquistaram uma faixa de público - num movimento em que havia também aproximações com outros compositores buscando o humor, como Hermelino Neder, e seu Footbol Music Band, os irmãos Jean e Paulo Garfunkel, Celso Brunetti, entre outros.
Enquanto o Rumo se mantém ainda singrando as águas independentes, o Língua de Trapo preferiu as asas protetoras da RGE (ligado ao grupo Globo) enquanto o Premê está hoje na EMI-Odeon.
Há quatro anos, no MPB-Shell 1982, o Premeditando o Breque aparecia com o divertido "O Destino Assim o Quis" (Wanderley Daratioto), que não levou nenhuma premiação, mas deu ao grupo condições de se tornar conhecido.
Chegando agora ao seu quarto elepê - após o independente disco de estréia; o "Quase Lindo" (Continental, 83) e "O Melhor dos Iguais" (Odeon, 85), o Premeditando continua na mesma linha de deboche e irreverência - desta vez se dando ao luxo de oferecer até um álbum extra ("Dê Folga ao seu Programador"), com algumas faixas mais bem comportadas, entremeadas de gags e irreverentes entrevistas - com a esperança de merecerem divulgação nas rádios.
A exemplo do ano passado, quando a Língua de Trapo ("Como é Bom Ser Punk", RGE) e o Premê ("O Melhor dos Iguais", Odeon), saíam com elepês simultaneamente, também agora se repete esta estratégia, com o Língua aparecendo com seu "Dezessete Big Golden Hits Superquentes mas Vendidos".
Ambos formados por estudantes ("Premê" na Escola de Comunicação e Artes da USP; "Língua" na Faculdade de Jornalismo da Fundação Casper Líbero), tem entretanto, algumas diferenças, como, inteligentemente, observa o crítico Eduardo Marins há mais de um ano ("O Estado de São Paulo"), 16/7/86: enquanto o Premê dá mais ênfase a proposta musical e dose o seu humor, se não dentro dos limites do convencional, pelo menos sem chegar as raias da iconoclastia; o Língua de Trapo usa a música apenas como suporte para sua crítica política e social que não deixa pedra sobre pedra.
A irreverência do Língua de Trapo chega ao ponto de apresentar um encarte com as letras das músicas concebidas integralmente sobre desenhos dos mais famosos (e anônimos) dos pioneiros da pornografia em quadrinhos - Carlos Zéfiro (sobre o qual já há três livros de ensaios). Na capa, ao invés da frase "Disco é Cultura", o grupo diz: "Disco é Chato".
Embora as metralhadoras giratórias da paródia não poupem ninguém, tanto o Premê com o Língua - e ambos desenvolvem trabalhos com unidade de grupos - voltam-se bastante para o sexo e o erotismo. Por exemplo, o Língua de Trapo vai a máxima irreverência com "Marcinha Ligou" (as trompas), enquanto o Premê conta a divertida história de um menage-a-trois bem sucedido em "Império dos Sentidos". A traição nestes tempos de informática está na "Balada Cibernética" (Carlos Mello/Cassiano Roda) do Premê, que teve em sua concepção a colaboração de outro irreverente bem humorado - Serginho Leite. As letras são as vezes longas, como "Das Profundezas" (Samba do Inferno), de Mello/Lizoel Costa, do Língua ou o "Rubens" (Mário Manga), do Premê, este um debochado hino ao homossexualismo - que não se sabe se criado como preconceito ou simples ironia. Uma réplica ao "Garota de Ipanema", é dado por Wandino "Garota de Copacabana", na qual um português oferece seu amor, dinheiro e compreensão para um fogosa mulata (nesta faixa, os arranjos foram de Danilo Caymmy/Paulo Jobim). Jânio Quadros é devidamente ironizado numa salsa ("FI-lo Porque Qui-lo"), enquanto que a música que dá título ao elepê do Premê ("Grande Coisa"), também longa e de difícil assimilação sem a leitura do texto, tem a narração em estilo de transmissão esportiva.
O Premê satiriza muito - desde os modismos ("A Rainha do Karaokê") até uma referência a "Hitler", passando pelo vício do fumo e o erotismo mais explícito e apelativo em "Grito" (Laerte Sarrumor).
Nem só de riso fácil vive a música - e a insistência do Premê e do Língua em repetirem-se numa linguagem que acaba se tornando óbvia, faz com que se tema pelo futuro destes grupos. Há um ano e 4 meses, Martins fazia uma observação que, embora se referisse aos discos anteriores, aplica-se como uma luva em relação a estes novos trabalhos: do Língua e do Premê: "Existe um risco claro para o qual os dois conjuntos tem de estar atentos e o exemplo mais evidente hoje é o Blitz que, no terceiro LP, praticamente já esgotou seu manancial de "criatividade". Por quanto tempo as contratações e paródias tão bem executadas pelo Premê e pelo Língua de Trapo manterão o nível que, em uma ou outra composição, já baixa um pouco? A saída parece única: a revalorização cada vez maior da proposta musical, de um som mais requintado, mais elaborado, que sustente uma proposta infinitivamente no humor, embora mais do que nunca, pelo menos neste momento, o País muito esteja precisando dele".
LEGENDA FOTO - Premeditando o Breque: muito riso, pouca música.
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