Um beijo roubado e otras cositas más em Gramado
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 12 de abril de 1986
Gramado - A movimentação não poderia ser maior. Os hotéis não só de Gramado, mas também de Canela - município vizinho - estão lotados. A temperatura caiu e o céu está escuro, dificultando que se observe a passagem do Halley. Mas quem quer saber do cometa no espaço se há tantas estrelas na Terra? Afinal, nesta 14ª edição do Festival de Cinema Brasileiro, definitivamente consagrado como o maior evento da área cinematográfica, não há quem não queira aqui estar presente. Gramado, com sua paradisíaca localização, o clima descontraído do Festival, a excelente organização, mais de 100 filmes em exibição - quase metade dos quais em competição nas várias categorias (Super-8, Curta e Longa-metragem) fazem com que a cidade fervilhe neste fim-de-semana.
Se durante o dia o hotel Serra Azul fica cercado de centenas de crianças e jovens, buscando autógrafos das personalidades artísticas que aqui circulam, na madrugada, após as longas sessões no cine Embaixador, a movimentação se transfere para o "Bar das Estrelas", no Hotel Serrano - onde apesar dos preços altíssimos (Cz$ 170,00 por uma dose de uísque importado; Cz$ 35,00 um Campari), o movimento é imenso. A atriz Regina Dourado, a bela e sensual morena que pela sua interpretação em "Tigipió" surge ao menos como estrela-revelação desta mostra, comanda todas as madrugadas um karaokê - no qual, de Othon Bastos (presidente do júri de longa-metragem) a Ney Latorraca, os atores mostram seus talentos canoros, desfilando um repertório de sambas-canções e boleros.
Ney Latorraca, de barba, trajado com tanta displicência que já foi até criticado pelo colunista social Roberto Gigante - foi protagonista de uma das (poucas) fofocas de bastidores deste Festival, socialmente muito bem comportado. Um beijo, intenso, trocado com a atriz Miriam Rios - cuja presença anteciparia a chegada do rei Roberto Carlos - provocou muitos comentários. Pelo sim, pelo não, Miriam acabou voltando ao Rio de Janeiro.
Se Roberto Carlos, porventura, tivesse vindo para passar o fim de semana com sua namoradinha Miriam Rios, o Festival estaria reunindo, indiretamente, três mitos da MPB. Chico Buarque de Hollanda aqui se encontra desde terça-feira, procurando permanecer anônimo, apenas acompanhando sua esposa, Marieta Severo (atriz de 4 filmes em competição, 3 longas e um curta) e se recusando a oferecer uma entrevista coletiva. Em compensação, em sua homenagem foi organizado um jogo de futebol, no qual a sua equipe levou a pior: 3 a 0.
Antônio Carlos Jobim apresenta-se hoje à noite no Hotel Lages de Pedra, em Canela - o super 5 estrelas que no ano passado sediou as três edições da Festa Nacional do Disco, e que, durante o festival de Gramado, fica meio esquecido.
Aproveitando a alta temporada que a mostra promove, a direção do hotel trouxe grandes nomes da MPB - do humor de Juca Chaves a Antônio Carlos Jobim, sem esquecer o acordeonista Renatinho Borghetti - que estão se apresentando desde a noite de quinta-feira. O problema é como encontrar o dom da onipresença e poder também aproveitar esta programação paralela, se em Gramado já acontecem tantas coisas interessantes: os filmes em competição à noite, o encontro mundial das mulheres cineastas pela manhã, no Hotel Serrano, filmes em super-8. Sem contar as centenas de rodas interessantes em hotéis, restaurantes, bares e mesmo nas ruas - nos quais os nomes mais famosos mostram total descontração, sem maiores vedetismos - pois é difícil se destacar entre tanta gente conhecida.
Mulheres em ação
Bruna Lombardi, poeta e atriz, brilhou na manhã de quinta-feira, ao participar da mesa-redonda do encontro mundial de mulheres cineastas. Com simplicidade, inteligentemente, Bruna falou sobre sua experiência de atriz, poeta e mulher, revelou fatos curiosos dos 3 meses que passou no sertão de Minas Gerais, interpretando o personagem Diadorim de "Grandes Sertões" [Grande Sertão: Veredas].
Por exemplo, teve uma discussão violenta com um jagunço da região, que a confundiu com um homem - devido a sua caracterização - e a ameaçou de morte. A situação só não ficou mais grave porque convenceram o jagunço de que Diadorim era uma mulher. "Então não mato", disse o sertanejo.
Kate Lyra, afinal, apareceu na reunião das mulheres cineastas, que nos debates da manhã de quinta-feira lotaram a Sala Havana do Hotel Serrano. A diretor Suzana Amaral, 50 anos, 9 filhos, realizadora do premiado "A hora da estrela", foi uma das presenças mais objetivas neste encontro, no qual a jornalista e cineasta Inês Castilho, editora do jornal "Mulherio", mais uma vez mostrou, lucidamente, a questão das reivindicações das mulheres por um maior espaço no cinema. Os debates tiveram muitas discussões paralelas e, enquanto a diretor mexicana Manuela Fernandez Violante ninava seu filho de 8 meses, as mulheres presentes - entre cineastas, técnicas, produtoras e atrizes - discutiam desde a chamada "jornada dupla do sexo feminino" até as dificuldades da gravidez na carreira de uma realizadora, "que, afinal, grávida, não pode ir para a luta na hora de dirigir", como se queixou a sempre braba Tizuka Yamazaki, 3 longas-metragens, mãe solteira, e a realizadora brasileira que mais tem atuado nos últimos anos (atualmente prepara a produção de um longa sobre Santos Dumont, em co-produção com a França).
Hoje é dia de expectativas, tensão e ansiedade entre as centenas de pessoas envolvidas nos curtas e longas que, desde a noite de segunda-feira, vêm sendo projetados no Cine Embaixador. Afinal, com a exibição dos curtas "Boca Aberta" e "O dia em que Dorival encarou a guarda" e dos longas "Com licença eu vou à luta", de Luís Farias, e "Sonho sem fim", de Lauro Escorel - encerrou-se, ontem à noite, a parte competitiva.
Para dar um toque de festa de Oscar no encerramento, a comissão organizadora, presidida pelo vice-prefeito Enoir Zorzanello, esforça-se para que os resultados não vazem antes da hora em que os apresentadores Tânia Carvalho e Clóvis Duarte, chamarem no palco do cinema os artistas mais famosos para abrirem os envelopes e anunciarem os premiados nas diferentes categorias. Para garantir o sigilo, os dois júris (curta e longa), que têm feito reuniões diárias, para exaustivas análises dos filmes em competição, terão sua decisão final hoje, entre as 20 e 23 horas - justamente enquanto na tela do cinema estarão sendo mostrados os filmes "hors-concours", "Aqueles dois" e "Eu sei que vou te amar".
As especulações, naturalmente, em torno dos vitoriosos, são muitas. Cada um tem a sua opinião mas há alguns consensos. Os dois filmes favoritos, até o penúltimo dia do festival, a levarem os principais "Kikitos", são "O homem da capa preta", de Sérgio Rezende", e "Filme demência", de Carlos Reinchenbach. Mas surpresas podem acontecer. Até mesmo premiações à versão delirante, chata e pretensiosa que Julinho Bressane fez de "Brás Cubas", livremente inspirado em Machado de Assis, Bressane, famoso por seus filmes herméticos e complicados, repete em todas as entrevistas que não se importa com o público e faz filmes "para o meu prazer e de meus amigos". Muito bem. Só que deveria fazer estas curtições sem apelar para o financiamento da Embrafilme, que afinal aplica em suas bobagens visuais o dinheiro do contribuinte brasileiro. De todos nós que preferimos um cinema mais inteligente, sério e oportuno.
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