De Bianchi a Carol, o nosso cinema dá certo
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 12 de janeiro de 1982
Sérgio Bianchi, paranaense de Ponta Grossa, 33 anos, levou mais de dez anos para conseguir realizar o seu primeiro longa-metragem. Depois de estudar na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e ali fazer dois curtas-metragens, inspirado em contos de Júlio Cortazar, Bianchi aglutinou alguns amigos atores/atrizes, conseguiu um velho casarão e, numa espécie de comunidade hippie, fez uma reflexão liberta sobre a fase do “paz e amor, bicho!”. O resultado foi “Maldita Coincidência”, que, no ano passado, se tornou notícia ao ter algumas seqüências censuradas – e colocando Bianchi no mausoléu das vítimas da Censura. “Maldita Coincidência” inaugurou o cine Groff dividindo o público: houve quem adorasse o filme tipicamente underground (ou, nacionalisticamente, udigrudi) houve quem não o entendeu e só viu as falhas: história desconexa, hermetismo na mensagem, improvisações, falta de recursos técnicos.
Se dificilmente Bianchi conseguirá recuperar o (pouco) que investiu no filme – destinado a exibição em sessões malditas e cinemas não comerciais – em compensação está colecionando simpáticos artigos. Ainda agora, a revista “Status” (janeiro/82), Cr$ 280,00), em sua sessão “Viva”, dedica generoso texto com recomendação: “não perca esta fábula da sexualidade infantil”.
O texto, sem identificação do autor, diz: Fique atento para este filme: “Maldita Coincidência”. Se estiver passando num cinema perto de você, corra e assista. É um velho problema brasileiro: má distribuição, desatenção de exibidores, ignorância e preconceitos acabam relegando ao esquecimento filmes como este, do diretor Sérgio Bianchi. Se estivéssemos nos Estados Unidos, seria certamente um acontecimento. Em linguagem, temas ousados e realização, o filme é de uma vanguarda comparável à de “Pink Flamingoes”, por exemplo.
“Maldita Coincidência”, de Sérgio Bianchi, provavelmente escapará desta desagradável “glória futura”.Nas poucas vezes em que o filme foi exibido, a platéia saiu excitada, e a crítica não poupou elogios. O filme é uma poética fábula da sexualidade infantil com a presença de atores de Sérgio Mamberti, Rodrigo Santiago e Lélia Abramo.
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A mesma edição de “Status” abre suas páginas nobres, da entrevista do mês, para ouvir o cineasta do mês Ody Fraga, 56 anos, 17 longas-metragens assumidamente pornô. Um detalhe que dá esta entrevista de Ody interesse local: embora não haja referências na entrevista concedida a Astolfo Araújo (também cineasta bissexto), o fato é que foi em Curitiba que Ody fez seu primeiro longa-metragem. Ou, mais especificamente, iniciou o primeiro longa. Foi em 1964, quando Nelson Teixeira Mendes, então também se iniciando na produção, aqui veio rodar “ O Diabo de Vila Velha”. Ody fez as seqüências de interiores, rodados em cenários montados no grande auditório do Teatro Guairá, então em obras. A produção do filme era muito confusa, com problemas de toda ordem e assim Ody acabou se desentendendo com Teixeira Mendes e voltou a São Paulo, sendo substituído por José Mojica Marins – o temível Zé do Caixão, que fez outras seqüências, mas, no final, o próprio produtor acabou assumindo a direção e concluindo o filme, um bangue-bangue calamitoso medíocre, que só viria a estrear um ano depois. Em compensação, o filme deu sorte: Teixeira Mendes partiu para outros filmes, na linha mais comercial, Mojica Marins consagrou-se no gênero horror e Ody Fraga foi descoberto como roteirista e diretor, fazendo filmes de grande sucesso de público, de forma que hoje é um dos mais requisitados realizadores do chamado “ cinema da boca do lixo”, em São Paulo.
Da entrevista de Ody Fraga, há algumas jóias que merecem transcrição. Por exemplo, assume a classificação de pornógrafo, “ com muito orgulho, pois a pronografia é osexo sem vergonha de si. Já o erotismo é complexo, exige véus, lábios vermelhos, roupas esvoaçantes e muita masturbação mental. Veja, historicamente, que é mais importante: Boccacio ou Sade? Quem é o mórbido? Quem é o puro?”.
Ody não deixa de fazer suas claras críticas: “ Eu te Amo” do (Arnaldo) Jabor é tão chulo como qualquer filme pornô da Boca. Só que é espertinho e sofisticado. Uma pornografia sofisticada, tão essencial para a classe média como uma sessão de análise. E muito mais barata. Todos nós precisamos de pornografia. Estimula as glândulas. Um executivo massacrado pelo seu trabalho se delicia com a Sonia Braga, como um operário com a Helena Ramos. No fim dá tudo no mesmo (...).
Uma das últimas proezas de Ody Fraga foi realizar para o comerciante Galante – o maior explorador da linha pornô – um filme intitulado “A Filha do Calígula” realizado em apenas 30 dias para aproveitar toda a onda que a proibição em torno de “Calígula”, produzida por Bob Giudice e dirigida por Tinto Brassi, havia provocado. Diz Fraga: “Galante é um cara espertíssimo: me chamou na terça-feira para conversar sobre o filme que ele havia vendido, que iria estrear dentro de 30dias. E do qual só tinha na verdade o título, “A Filha do Calígula”. Você sabe que um filme normalmente demora uns 120 dias para terminar. Pois bem, na segunda-feira seguinte[,] já estava filmando em Roma Antiga (...). Convoquei o auxílio de pequenos circos com toda a sua imponência. Só que os atores eram tipos de Boca com os mais variados sotaques. Eram todos ingênuos e muito ciosos de seu papel, vindo sempre discutir comigo a psicologia de seus personagens. Acontece que eu não tinha tempo e muito menos personagens Eram cenas que tinham um sentido muito próprio, e que iam se arrumando como um quebra-cabeças. A fita tem uma carreira econômica muito curiosa, sob o ponto de vista sociológico: nas pequenas cidades do Interior, principalmente no Nordeste, é um sucesso. Nas grandes cidades é um filme de renda média. Mas realmente nunca mais pretendo entrar num esquema tão maluco como esse”.
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E qual receita que Ody dá para o ator e atriz ideal dos filmes pornô: “Primeiro, o ator não deve ter nenhuma imaginação erótica. Segundo, deve ter um padrão intelectual bem baixo, sem nenhujm bloqueio”.
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Mas a realização de filmes pornô chega também a Curitiba. José Augusto Iwersen, 34 anos, que aos 13 anos já fundava o Cine Clube Pró Arte, no Colégio Santa Maria e, posteriormente, ali instalou o primeiro cinema de arte do Paraná – o “Riviera”, graças ao qual uma geração de cinéfilos curitibanos pode assistir a mais de 50 clássicos que, normalmente, jamais chegariam a nossa cidade, também assumiu o erotismo. Como fotógrafo passou a produzir fotonovelas que inicialmente eram veiculadas por editoras do Rio-São Paulo, mas agora estão sendo lançadas por seu amigo de infância Faruk El Khatib, da Grafipar.
Uma das criações de Iwersen, a personagem “Carol Blue”, interpretada por uma bela e atraente loira, Ana Maria Krisler, totalmente desinibida nas mais eróticas seqüências e que tendo emplacado nas bancas (o 6º número saiu agora), vai para o cinema. Os dois filmes da série, em Super 8, com cenas de sexo explícito, já estão prontos e levarão cenários como Foz do Iguaçu, Vila Velha e Paranaguá – emoldurando tórridas cenas de amor – não só aos “voyeurs” brasileiros, mas ao Exterior, pois em sua última viagem a Nova Iorque, Faruk já acertou o lançamento dos filmes de Carol Blue no mercado harcore americano. Ou seja, nosso sexo tupiniquim perde seu complexo de inferioridade e graças a Carol Blue vai ao mundo.
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