Trocando figuras, afinal o tempo feliz para os "ratões" dos festivais
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 31 de agosto de 1986
Uma expressão, ainda não dicionarizada mas que já faz parte da linguagem musical: os Ratões de Festivais. Define aqueles compositores-intérpretes de talento que, na busca de um espaço profissional mas lutando ainda pela falta de oportunidades, apresentam-se regularmente em festivais de MPB que se realizam onde quer que pinte uma boa grana. Em São Paulo, Minas, Goiás, Rio de Janeiro - para falar apenas nos Estados em que se observa mais esta figura, há pelo menos uma dúzia de talentos que há anos vêm acumulando premiações. No Rio Grande do Sul, onde a quantidade de festivais - e as boas premiações em muitos (o de Santa Rosa, por exemplo, dando um Escort 0 km, ao primeiro classificado) já há uma geração de ratões, só que estes com maiores chances fonográficas: além de todos os festivais chegarem aos discos, também começam a aparecer álbuns individuais, dos que apresentam melhores condições.
Agora, com o início de uma etapa mais profissional dos festivais no Paraná - as gravações do Fercapo, de Cascavel, e o Cante Terra, de Campo Mourão (em setembro próximo), prêmios atraentes, já se começa a ver o interesse de compositores de outros Estados em paraticiparem destas mostras. Em Cascavel, no ano passado, houve uma injustiça ao não ser dado o primeiro lugar ao paranaense (radicado no Rio) Nilson Chaves, 34 anos, dois elepês (o segundo, lançado há pouco pela nova etiqueta Vison), que, para compensar, este ano saiu dali com várias premiações. Uma crônica dos festivais, falaria, obrigatoriamente em talentos emergentes - ainda desconhecidos em escala nacional, mas com sólidas canções.
Os Ratões Paulistas
No circuito dos festivais paulistas, que têm na Feira Avarense da MPB, organizada por Juca Novaes, o seu grande evento, quatro ratões ali tem se destacado: os irmãos Jean e Paulo ("Magrão") Garfunkel, Cesar Brunetti e Celso Viáfora.
São quatro talentos que, num mercado mais justo já teriam tido sua hora e vez há muito tempo, tal a qualidade das músicas que defendem. Entretanto, com as regras de marketing que estimulam tantas mediocridades na linha roqueira mas bloqueiam propostas mais brasileiras, até agora esta rapaziada - na faixa dos 27/40 anos - só tem sido ouvida em festivais, shows e uma ou outra faixa de compacto ou lp, geralmente independente e documentando eventos dos quais participam.
Jean e Paulo são artistas de ligações curitibanas. Netos do casal Paul e Helene Garfunkel (ele, pintor marcante; ela a fundadora da Aliança Francesa em Curitiba), Jean e Paulo constantemente estão entre nós, em visita aos primos Luca e Mônica Rischbietter. Vez por outra aqui mostram, em reuniões informais, também a música que fazem - marcada principalmente pelo humor.
Agora, finalmente, Jean e Paulo podem ser ouvidos num elepê - dividido com seus amigos Brunetti e Viáfora ("Trocando Figura", Copacabana).
Como parte de um projeto idealizado pelo compositor Eduardo Gudin e o animador cultural Helton Altman (dono do famoso bar "Vou Vivendo", núcleo musical dos Jardins, em São Paulo) - o "Copacabana Bom Tempo", que teve apoio de Adiel Macedo de Carvalho, agoa o único dono da Som Indústria e Comércio, o disco destes quatro ratões de Festivais está entre os mais interessantes do ano. Os Garfunkel comparecem com a enternecedora "Mazzaropi" - homenagem ao ator paulista (canção que foi pré-selecionada para o MPB Shel 83, que acabou não acontecendo), "Feito Brasileiro" e a salsa "Filhos do Sol", com a qual venceram a Feira Avarense da MPB, em julho do ano passado. Os Garfunkel são também parceiros de Viáfora e Brunetti na canção título "Trocando Figura", música que inspirou ao paranaense Elifas Andreato - responsável pela programação visual do projeto - uma interessante idéia: o elepê é acompanhado de um pacote com figuras em que estão reproduzidas algumas de suas mais belas criações gráficas (incluindo um cartaz de Natal, criado para a Fundação Cultural de Curitiba) e que podem ser colados na capa do disco. Uma beleza visual, tão grande quanto as músicas que se ouve.
Embora basicamente buscando o humor ("O Anna", "Carro da Polícia"), Brunetti é o autor de uma canção da maior beleza - "Operário Padrão", com uma letra ao melhor estilo de Hermínio Bello de Carvalho, que, aliás, apaixonado por seu lirismo, a incluiu como faixa de destaque no elepê "Luz e Esplendor", de Elizeth Cardoso (Arca), que estará sendo lançado dia 27 de agosto, dentro do calendário de eventos que marcam os 50 anos de carreira da Divina.
Sem favor, "Operário Padrão" ganhará lugar entre as 10 canções de 1986 e tem tudo para se transformar num clássico do repertório de Elizeth - embora, na interpretação do autor, neste elepê, já emocione, pela profundidade com que Brunetti fala do "coração/que rege o batuque ao bater da batuta/Que reage no muque à censura a conduta/Não espere num truque alguém te socorra/Não corra coração/Modere tua garra, não mate,não morra/Teu eletro é uma farra parece gangorra/Lembra bem que a cigarra só dura um verão."
Com "Grão de Terra", "Super-Comum" e "Tantas viagens", Celso Viáfora completa a beleza de "Trocando Figuras": três canções extremamente bem desenvolvidas, nas quais inclui o humor com inteligência.
Quatro compositores-intérpretes, cada um merecedor, em breve, de ter o seu próprio elepê.
Bom Tempo Musical
O nome do projeto de Helton e Gudin não poderia ser mais feliz: Bom tempo. Além da beleza de "Trocando Figuras", este primeiro pacote traz três outros esplêndidos discos.
Eliete Negreiros, cantora fascinante e que há 4 anos era a revelação de 1982 com seus "Outros Sons", produzido por Arrigo Barnabé para o Som da Gente, reafirma em um novo disco a sua extraordinária versatilidade e beleza musical. Se de um lado grava canções modernas, criativas - como duas do paulista-londrinense Itamar Assunção ("Breu da Noite", "Meu Amor") e duas outras do londrinense Arrigo Barnabé - "Angulos" (parceria com Gudin/Caetano velloso) e "Tudo Está Dito" (parceria com o poeta Augusto de Campos), de outra forma recria, por exemplo, um clássico de Edith Piaf - "La Vie En Rose", com emoção. Um dos mais belos temas que Nino Rotta compôs para um filme ganhou letra de Roberto Riberti e resultou no nostálgico "Pierrô Sem Coração", enquanto Carlos Rennó, hoje conhecido autor de "Escrito nas Estrelas" (vencedora do Festival dos Festivais e que catapultou a carreira de Tetê Espíndola) divide duas novas canções com ótimos parceiros: "Domingo Longo" com José Miguel Wisnik (professor, pesquisador de MPB e letrista que começa a aparecer e "Riacho" com Passoca (Marco Antônio Bilalba), um dos grandes compositores desta década e que apesar de já ter feito dois (ótimos) elepês continua ainda praticamente desconhecido. A versatilidade de Eliete também inclui os modernos Luiz Guedes/Thomaz Roth, em parceria com Costa Netto ("Coração Black-Tie") e o grande Elton Medeiros, parceiro de Gudin em "O Melhor Carinho", com um belo verso:
Às vezes se guarda o melhor carinho/
Se olculta o desejo pra não sofrer
Quando vê já passou, se perdeu/como
um livro que só você leu
Onde o amor fica a meio caminho/
recusa a viver.
Baiano de Serrinha, compositor de sucessos que já teve até Vinícius de Moraes entre seus parceiros, Vicente Barreto está na estrada desde 1972 e apesar de três elepês e muitas andanças pelo Brasil ainda não encontrou o espaço merecido. Sem gravar há 3 anos, vicente entrou no projeto Bom Tempo com um elepê excelente, tendo como arranjador em todas as faixas o ótimo Heraldo do Monte. Com parcerias que vão do gaúcho Raul Ellwanger ("Moça do Leblon", "Amor de Papel"), a Hermínio Bleol de Carvalho a ecológica. "Gaiola"), sem esquecer amigos nordestinos de muitos - como Jaguar ("Beijo de Lua", "Teias do Coração" ) e Alceu Valença ("Pirapora"), Vicente Barreto é um compositor - intérprete para ser ouvido com a máxima atenção. Seu tom de voz, sua forma de dizer a música, faz com que repitamos agora, aquilo que já dissemos há 7 anos, quando de seu primeiro elepê ("Assim Tão Moço", 79): um compositor nordestino com a alma do Brasil.
O Brasil Instrumental
Uma das presenças mais vigorosas na música instrumental nestes últimos anos tem sido a do grupo Pau Brasil, formado por Nelson Ayres (teclados), Roberto Sion (sax/flauta), Paulo Belinati (guitarra), Rodolfo Stroeter (baixo) e Bob Wyatt (bateria). Em cinco anos, dois elepês gravados no Som da Gente, este grupo desenvolve uma proposta de música instrumental contemporânea da maior qualidade - o que tem feito ser convidado a dividir concertos com a Sinfônica Jovem , emSão Paulo participar da primeira edição do Free Jazz Festival e, numa excursão ao Japão e três pela Europa (atuando em 38 cidades de 7 países), chegar até o Festival de Jazz de Paris.
Dentro do ecletismo que marca do projeto Bom Tempo, o Pau Brasil comparece com um extraordinário lp ("Pindorama"), que fazendo jus ao nome é uma revisitação sonora às raízes brasileiras, com temas que vão desde uma adaptação de cantos indígenas do Krahós até uma reinterpretação da Bachiana Brasileira nº 5 de Villa-Lobos, passando pelo baião, rancheira e música urbana.
Há momentos fascinantes, como, por exemplo, a gravação de "Bye Bye Brasil"(Chico/Menescal), em sua primeira versão instrumental, ou as participações especiais de Hermeto Paschoal e Marlui Miranda em "Alakai" e dos percussionistas Dirceu Medeiros, Oswaldinho da Cuíca e Ubaldo em "Lundu Creolo".
Como encarte do disco, uma divertida "História do Brasil", que Edgard Barbosa Poças montou com base em letras de velhas marchinhas carnavalescas - ilustradas pelo grande Nássara.
Realmente, o bom Tempo musical da Copacabana não poderia ter tido melhor lançamento. Agora, esperamos o segundo pacote, com discos de outras bandas: Elton Medeiros, Waldir da Fonseca, Vânia Bastos e o grupo Época de Ouro.
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