Um festival refletindo o que temos no cinema
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 12 de julho de 1991
Nem bom, nem ruim - refletindo apenas a realidade do cinema brasileiro nestes tempos colloridos. Eis como um experiente observador de festivais sintetizava, na noite de terça-feira, 9 - no encerramento no cine Brasília, onde, durante uma semana, seis longas, dez curtas e dois médias mostraram a resistência do cinema nacional. Com a produção reduzida a níveis mínimos - após a extinção da Embrafilme e crise econômica que fechou outras torneiras de financiamento - a produção audio-visual não eram poucos os que pensavam que os festivais não seriam realizados - não só pelos custos dos mesmos mas, principalmente, pela ausência de produções inéditas. Felizmente, isto não ocorreu: filmes que tinham sido iniciados há anos e interrompidos por falta de grana acabaram sendo finalizados e a oferta superou as expectativas. Em Brasília, foram 13 os longas inscritos - e os seis que ali não conseguiram entrar após a polêmica escolha do júri de seleção (*), sobraram seis que esperam melhor sorte para o próximo (agosto) festival de Gramado, cujas inscrições duplicaram e dos quais um júri já começa a fazer suas escolhas - a serem divulgadas nos próximos dias.
Com exceção do solitário, agressivo e deselegante protesto feito pelo catarinense (de Joaçaba) Rogério Sganzerla contra o júri, procurando atingir especialmente o seu presidente, o respeitabilíssimo Nelson Pereira dos santos, o trabalho exaustivo dos convidados para integrar esta comissão de avaliação foram elogiados. "Vocês tiraram leite das pedras, ao equilibrar as premiações", comentava Carlos Reichenbach, cineasta dos mais respeitáveis e sempre uma presença querida nos festivais. Mesmo com uma premiação vaiada pelo público - a de melhor direção para o carioca Neville de Almeida ("Matou a família e foi ao cinema"), o júri procurou, equilibradamente, dar uma valorização aos cinco longas honestos, de valor, e que, realizados por cineastas dignos e competentes, esforçaram-se em mostrar seu trabalho - sem buscar o ódio, o rancor e a mentira.
"O Corpo", uma tragicomédia que o paulista José Antônio Garcia, 35 anos, soube extrair de um conto de apenas dez páginas que Clarice Lispector (1925-1977) escreveu poucos meses antes de morrer - quando o editor Alfredo Machado (1922-1991) lhe encomendou um livro de estórias eróticas (dizem que os 12 contos da obra, "Via Crucis do Corpo", foram escritos no Dia das mães de 1976), mereceu ser o grande premiado desta 24a. edição do mais antigo festival de cinema do Brasil (criado em 1965 por Paulo Emílio Salles Gomes). Com a competência do roteirista Alfredo Oroz, que em 1985 já havia auxiliado Suzana Amaral e levar a tela outra obra de Lispector ( "A Hora da Estrela", premiada com 12 Candangos), Garcia, ex-parceiro de Ícaro Martins na trilogia "Olho Mágico do Amor" (1982), "Onda Nova" (1984) e "Estrela Nua" (1986) realizou uma tragicomédia com o tratamento cínico, levemente erótico (sem jamais cair na pornografia como em "Matou a família...") e comunicativa sobre um dono de farmácia, Xavier (Antônio Fagundes, o Felipe Barreto, de "O Dono do Mundo") que vive feliz e contente com duas mulheres - Carmen ( Marieta Severo) e Cláudia Gimenez (ainda pouco conhecida nas telas, mas popular pela personagem que faz como a gordinha de "beijim, beijim, pau, pau" da Escolinha de Chico Anysio).
O ingênuo menage-a-trois sofre uma interrupção quando o viril Xavier, não satisfeito com as duas mulheres que com ele dividem o leito conjugal, apela para os serviços de uma loira dançarina de boites (Carla Camuratti, praticamente lançada por Garcia em "Olho Mágico do Amor"). O triângulo se desfaz e termina de uma forma dramática - embora sem lágrimas, com uma irônica seqüência final em que aparece Daniel Filho ( um dos "convidados especiais" do elenco) numa das poucas liberdades que Oroz tomou sobre o texto original. Melhor filme do festival segundo o júri oficial, valeu também a divisão do prêmio de melhor atriz para Marieta (que está também ótima em "Vai Trabalhar Vagabundo, II: A Volta") e Claudia Jimenez, mais os prêmios de roteiros, trilha sonora, montagem (Danilo Tadeu/Eder [Mazzini]) e cenografia (Felipe [Crescente]). Embora para estas três últimas categorias houvessem outros trabalhos em idênticas condições (como "Vai Trabalhar Vagabundo II", que só ficou com os prêmios de melhor ator-Hugo Carvana e atriz coadjuvante-Andréa Beltrão), não aconteceram protestos. O [júri] - presidido por Pereira dos Santos e integrado pelo roteirista Alcyone Araújo, documentarista Wlademir de Carvalho, produtor André Klotzel, atriz Maria Sylvia e compositor-música Jacques Morelembaum - também destacou alguns méritos da comédia "Sua Excelência, o Candidato", que abrindo o festival, foi recebido com hostilidade pela crítica (preocupando o jovem e estreante diretor Ricardo Pinto e Silva) mas aplausos pelo público que gostou das trapalhadas de um político, Orlando Carvalho Lopes (Renato Borghi) e seu confuso porta-voz (levemente lembrando Claudio Humberto, na interpretação de Claudio Mamberti). No final, acabou com os prêmios de som (Luciano di Segni), prejudicadíssimo na primeira exibição devido a deficiência da aparelhagem em Dolby do cine Brasil (que motivou notas de protestos e ensejou uma reprise); montagem (dividida com "O Corpo") e ator coadjuvante, Eurico Martins (ator de teatro em São Paulo, em sua estréia nas telas).
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Documentário voltado a destruição das culturas [indígenas] que existiam nas Américas (Incas, Maias, Astecas, no México e nos Andes) e os Povos da Floresta; (Brasil), "Ameríndia-Memória, Remorso e Compromisso "foi a melhor demonstração de que um filme realizado com honestidade e amor conquista ao público: merecidamente ficou com o Candango (e os Cr$ 5 milhões) como o melhor filme no voto popular - derrotando, por pequena margem, "Vai Trabalhar, Vagabundo II". O júri também reconheceu seus méritos: apesar de bons trabalhos de [fotógrafos] conhecidos (Dib Lufti, em "Vai Trabalhar..." e "Isto é Noel Rosa") Antônio Meliande ("O Corpo"), Tadeu Ribeiro ( "Matou a família...") Fernando Duarte/Walter Carvalho ("Nosso Amigo Radamés Gnatalli"), premiou ao diretor-[fotógrafo] Conrado Berning, 50 anos, alemão naturalizado brasileiro, da ordem do verbo Divino, que após um primeiro longa ("Pé na Caminhada", 1988, sobre a teologia da Libertação) voltou-se a um trabalho mais amplo. Assim, além de percorrer a Amazônia, Equador, Chile e México em busca de imagens de nações indígenas que estão praticamente extintas, enriqueceu seu filme com o precioso material que Jesco Von Puttkamer, 72 anos, brasileiro filho de alemães, hoje radicado em Goiânia, fez nos anos 50 quando trabalhando com os Irmão Villas-Boas documentou as tribos indígenas. Material - e que se encontrava depositado nos arquivos da Universidade Federal de Goiás (da qual Von Puttkamer é funcionário) - as imagens (que ocupam mais de 40% dos 70 minutos de duração de "Ameríndia") são de ótima qualidade. Assim como o catarinense Fernando Severo soube aproveitar as imagens espontaneamente antropológicas que Wladimir Kozak rodou no interior do Brasil (e com elas fez o premiado "O Mundo Perdido de Kozak",88), o padre Conrado fez agora com que se conheça o trabalho de outro pioneiro cinegrafista que documentou uma época em que as nações indígenas existem. Em contradição a estas cenas emocionantes, de um continente destruído em cinco séculos de "descobrimento", surgem as dolorosas cenas da realidade de nossos dias - especialmente na voz pungente de uma [índia] equatoriana, Ana Maria, que esteve em Brasília, acompanhando o festival.
Nota
(*) O primeiro júri de seleção escolheu apenas cinco longas para concorrer em Brasília. Neville de Almeida protestou e conseguiu que houvesse um segundo júri, que acolheu seu desastroso "Matou a família e foi ao cinema". A questão que se levantou foi a de que "O Fio da Memória", documentário de Eduardo Coutinho ("Cabra Marcado para Morrer"), excluído na seleção, tinha maiores méritos e deveria ter sido classificado - assim como o média "A Guerra dos Meninos", de Sandra Werneck, baseado no livro-denúncia do jornalista Gilberto Dimenstein. Sandra aliás, tentou mostrar o seu média na noite de encerramento - mas isto contrariava o regulamento do Festival.
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