Um repertório com os sambas da MPB
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 19 de julho de 1987
Heitor Villa-Lobos (1887-1959) soube sempre amar e entender a música popular, uma das razões pela qual sua obra foi tão grandiosa e internacionalmente aclamada, sem nunca ter perdido as raízes brasileiras. Por isto, quando em agosto de 1940, o seu amigo Leopoldo Stokowsky, de passagem pelo Rio de Janeiro, solicitou para que reunisse um grupo de compositores e intérpretes populares, para que a bordo do navio Uruguay, gravassem algumas músicas, Villa-Lobos não teve dúvidas: procurou seu amigo Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, 1889-1974), o célebre autor de "Pelo Telefone", 1916, primeiro samba registrado com esta designação, e o encarregou de levar aqueles que achava de mais representativos da música brasileira para o encontro com o maestro Stokowsky no navio, ancorado no porto da Praça Mauá.
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Leopoldo Stokowsky, maestro dos mais famosos na época, percorria vários países da América do Sul, trazendo a "All American Youth Orchestra", fazendo concertos nas cidades em que o navio fazia escalas. No Rio, os concertos foram no Municipal, nas noites de 7 a 8 de agosto, com entrada gratuita. Era a época da chamada "Política da Boa Vizinhança", quando o presidente Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), preocupado em atrair para os Aliados a simpatia dos países latino-americanos, dava ênfase ao intercâmbio artístico. Walt Disney (1901-1966) desenvolveu personagens e histórias em seus filmes com temas latino americanos (quando surgiu o até hoje admirado "Zé Carioca"), Carmem Miranda (1909-1955) começava a fazer sucesso nos Estados Unidos e tudo que pudesse abrir as portas de uma aceitação pela cultura americana - e vice-versa - era feito. Assim, a bordo do navio Uruguay havia sido montado um moderníssimo estúdio de gravação, para a época superior aos existentes nos países latino-americanos, nos quais Stokowsky recolhia gravações em todos os portos que parava, para posterior edição nos Estados Unidos, através da CBS. Os dois álbuns feitos no Brasil, ganharam o título de "Brazilian Native Music", possivelmente dentro de uma série que incluiu gravações feitas também em outros países (mas a respeito de outras produções, não se tem maiores registros).
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Na noite de 8 de agosto de 1940, por várias horas, um grupo de compositores humildes e simples, estiveram a bordo do Uruguay, ali gravando músicas. Astutamente, Donga incluiu o maior número de sua próprias composições. Zé da Zilda (José Gonçalves, 1908-1954) interpretou "Seu Manoel Luís", "Passarinho Bateu Asas" e, naturalmente, o seu já famoso "Pelo Telefone". A dupla Jararaca (José Luís Rodrigues Calazans, 1896-1977) e Ratinho (Severino Rabgel de Carvalho, 1896-1972) interpretou também uma outra composição de Donga, "Bamba do Bambu" (que, mais tarde, em arranjo ao gosto americano, foi sucesso com Carmem Miranda que a cantou em um filme da Fox). A mesma dupla caipira interpretou também uma embolada de sua autoria, "Saco no Sapo", enquanto que só Jararaca, em dueto vocal com Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana filho, 1898-1973) apresentou o maracatu "Zé Barbino". Ao que se saiba, esta foi uma das raras vezes em que Pixinguinha gravou uma música como cantor.
A Clarineta e o sax-alto de Luís Américo (1900-1960) estão na faixa instrumental, o choro "Tocando Por Você", do próprio Luís, um dos grandes músicos dos anos de ouro da Rádio Nacional. Outra curiosidade é a presença de um cantor pouco conhecido e lembrado, Zé Espingueira, em "Cantiga de Festa", na qual a parceria também é creditada ao esperto Donga.
Além de Pixinguinha, o nome mais famoso a participar das gravações foi Cartola (Angenor de Oliveira, 1908-1980), que ali gravou um de seus sambas mais bonitos, "Quem me Ve Sorrir" (parceria com Carlos Cachaça/Carlos Moreira de Castro, RJ, 3/8/1902).
Um cantor que também ficou esquecido, José Nascimento, também foi levado por Donga e cantou sua parceria com Savid Nasser intitulada "Ranchinho Desfeito". João da Baiana (João Machado Guedes, 1887-1974) interpretou um "corima" de Getúlio Marinho Intitulado "Caboclo do Mato", no qual se destacava a flauta executada por Pixinguinha.
Praticamente todos os participantes daquela sessão histórica estão falecidos. O pesquisador Ary Vasconcelos, entretanto, identificou no registro de "Bamba do Bambu" o violão executado por Laurindo de Almeida (Miracatu, SP, 2/9/1917), que reside há 40 anos nos Estados Unidos, mas na época iniciava sua carreira artística no Rio de Janeiro.
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A participação de Villa-Lobos está representada por três faixas com cantos indígenas, interpretados inclusive por um "Orfeão" - cujos integrantes, obviamente, não são identificados: "Teiru-Nozeni-Na", "Camide Youne" e "Nosani-Ná". Villa-Lobos foi um dos primeiros compositores a se voltar a música dos índios e, dentro do interesse de Stokowsky em captar a chamada "native music", fez questão destes três registros.
Como há informações de que haviam sido gravadas 47 (alguns falam em 50) músicas, é de se perguntar quais as que ficaram de fora? E quem, nos EUA, selecionou o repertório?
Perguntas impossíveis de serem respondidas, pois as testemunhas dos fatos há muito já morreram. Mas ficaram aos menos 16 faixas, num registro que, para alegria de quem respeita e valoriza a nossa memória sonora, chega agora num elepê, que, se espera, dentro de três meses esteja a disposição dos interessados.
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