Gaya, o homem que sabia dos ritmos
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 20 de setembro de 1987
Em março de 1985, num sábado de muito sol, Gaya reencontrou-se com Hermínio Bello de Carvalho, que às vésperas de seu 50º aniversário, passava por Curitiba. Um almoço descontraído e amigo, que, por uma daquelas felicidades tecnológicas, teve seu aperitivo registrado em vídeo pelo Sérgio Fisbein, compositor e amigo maior, que havia trazido um Panasonic compacto dos Estados Unidos e estava, eufórico, gravando em som & imagens tudo o que era possível.
Assim, descontraidamente, tomando uma capirinha - embora já sob cuidados médicos, o bom Gaya se permitiu, "considerando o momento "para fugir um pouco do regime" - ele falou com entusiasmo e até emoção do projeto que o fascinava no momento: um livro sobre ritmos brasileiros. E sobre este tema, poderia expor sobre horas, já que poucos maestros e arranjadores souberam, tão bem, integrarem-se a riqueza de ritmos do Brasil - buscando a forma exata para cada gravação. Esta foi, entre outras, a razão pela qual por mais de 30 anos ligado a fonografia - e a maior parte contratado da EMI/Odeon, no Rio de Janeiro - Gaya foi fundamental para a perfeição de tantos discos da música popular brasileira.
Agora, entristecido com a morte de Gaya, busco na discoteca e vejo que, com o seu nome, não encontro mais do que cinco elepês. Entretanto, seria difícil de calcular - e tranqüilamente passariam de 200 - as gravações que graças ao seu talento ganharam um notável destaque. Mesmo as produções mais comerciais, de intérpretes limitados, ganharam sempre os arranjos perfeitos, os contornos suaves, o equilíbrio musical que o fez uma das personalidades mais importantes de nossa música.
Nos últimos anos em que, por razões familiares - (sua esposa, Stelinha Egg, é curitibana) - Gaya veio morar entre nós. Contratado do Sir Laboratório de Som & Imagem, ali não só dignificou as trilhas sonoras dos comerciais-produções de Percy Tamplim, como foi um mestre de toda uma geração de compositores de jingles, instrumentistas e mesmo novos arranjadores. Talentos como Reinaldinho, Paulo Chaves e, especialmente, Marinho Gallera - para só citar três exemplos - souberam aproveitar a convivência com Gaya e tiveram no trabalho do dia-a-dia algo que nem em Berkeley ou na Julliard School conseguiriam: um aprendizado prático, seguro e humano de como se faz um arranjo, da importância de destacar um instrumento e a necessidade da harmonia manter-se de forma humana, suave - mais do que a parafernália eletrônica - que nestes últimos anos engana a tantos "artistas".
Marinho Gallera, um paulista de Araraquara que em 20 anos soube curitibanizar-se, foi talvez o discípulo de Gaya que mais de perto o acompanhou nesta fase final de sua vida. Fosse no trabalho mais comercial, em jingles ou trilhas para comerciais de televisão, ou em projetos artísticos, pessoais - como o álbum "Curitiba da Gente" (em parceria com Paulinho Vítola) e, especialmente, na gravação de "A Paixão Segundo Cristino", de Geraldo Vandré, a presença de Gaya, sempre conferia dignidade a qualquer gravação.
A biografia de Gaya (ver matéria nesta mesma página) mostra um criador eclético, diversificado, entre as atividades que foram do piano aos arranjos para trilhas sonoras, mergulhando também no folclore - estimulado nisto por sua esposa, Stelinha Egg, cantora de raízes folcloristas - e que foi a primeira (e ironicamente, até hoje, a única) curitibana a alcançar uma projeção nacional a partir dos anos 40.
Pena que Gaya não tenha, nestes últimos anos, gravado um elepê como solista. Ótimo pianista, poderia ter realizado uma (ou mais) gravações, revelando inclusive suas composições (quantas não estarão inéditas? Cabe uma pesquisa a respeito) e que poderia inclusive ter marcado o Sir, como um selo cultural - e não apenas sinônimo do mais comercial e lucrativo estúdio de vídeo e som do Sul. Infelizmente, Gaya morreu sem ter podido publicar o seu livro (quantas páginas foram escritas?), e sem ter, ao menos, a alegria de ver reeditados alguns dos belos discos que fez - como "Os Maestros Premiados", que há 19 anos dividiu com Rogério Duprat - e que no auge dos festivais, trazia arranjos magníficos de músicas como "Carolina", "Travessia", "Alegria, Alegria", "Ponteio", "Gabriela", etc.
Difícil encontrar um (bom) cantor(a) ou instrumentista dos anos 50 a 70 que não tenha o maior respeito por Gaya. Tanto é que em julho de 1985, quando contamos a Paulinho da Viola, durante o FERCAPO de Cascavel, que o maestro estava gravemente doente, o autor de "Sinal Fechado", que teve Gaya como arranjador em seus primeiros elepês na Odeon, fez questão de gravar um minicassete, com uma mensagem especial:
"Gaya, velho da música! Vê se fica logo bom, pois estou sem gravar há dois anos, e quero voltar a fazer um elepê com seus arranjos. Só você pode fazer isto..."
passaram-se quatro anos. Paulinho ainda não gravou um novo disco. E Gaya agora é saudade.
Sua presença na MPB
GAYA, LINDOLPHO (Lindolpho Gomes Gaya), arranjador, regente, instrumentista, compositor. Itararé, SP - 06/05/1921 - Curitiba, 14/09/1987. Começou a aprender piano com sete anos de idade, só se profissionalizando como músico em 1942. Estudou no Colégio Franco-Brasileiro, de São Paulo, SP. A partir de 1942, no Rio de Janeiro, passou a atuar como pianista em programas de calouros na então Rádio Transmissora, passando para a Orquestra de Chiquinho na Rádio Clube e depois para a Rádio Tupi, onde conheceu a cantora Stelinha Egg, com quem se casou em 1945. Para a Victor e Odeon, realizou durante 15 anos arranjos e orquestrações, destacando-se na música popular brasileira.
Com os arranjos de "O Vento" e "O Mar" (ambos de Dorival Caymmi), interpretados por Stelinha Egg, recebeu o prêmio Melhor Disco do Ano, que possibilitou ao casal uma temporada artística pela Europa em 1955. Em Varsóvia, Polônia, regeu a Orquestra Filarmônica, recebendo a medalha de ouro do governo polonês, e atuou como juiz em congresso folclórico apresentado na Festa da Juventude. Em Moscou, regeu a Grande Orquestra do Teatro Strada, participando do filme "Folclore de Cinco Países", de Alexandrov, no qual tocou chorinhos de sua autoria. Na França, foi diretor musical do filme "Bela Aventura", com Stelinha Egg, sobre temas e motivos brasileiros. Fixando residência em Paris, onde trabalhou para a organização de gravações de Ray Ventura, fez arranjos para gravações de músicas brasileiras e sul-americanas. Orquestrou para uma gravadora francesa o elepê "Chants folkloriques breseliens", sobre temas brasileiros, interpretados por Stelinha. De volta ao Brasil, compôs músicas e fez arranjos para histórias infantis, com os seguintes elepês: "João e Maria", "O Gato de Botas", "A Moura Torta", "A Galinha dos Ovos de Ouro", "Branca de Neve" e "O Pequeno Polegar". Ainda na RCA lançou os elepês "Em Tempo de Dança" (dois volumes), para órgão e pequeno conjunto.
Sua passagem para a Odeon deu-se quando a Bossa Nova começava a tomar forma: fez os arranjos para o histórico elepê "Amor de Gente Moça", de Silvia Telles. Gravou ainda vários elepês pela Odeon, onde se destaca "Dança Moderna" com sua orquestra, tocando músicas tradicionais brasileiras, tais como "Rosa Morena" (Dorival Caymmi) e "Grau Dez" (Lamartine Babo / Ari Barroso). Em 1965 compôs as músicas do show "Rio de Quatrocentos Janeiros", apresentado no grill-room do Copacabana Palace Hotel, do Rio de Janeiro, recebendo o prêmio Euterpe 65. A música foi registrada em elepê comemorativo do IV Centenário da cidade. No ano seguinte, participou do júri que selecionou as 36 finalistas do I FIC, da TV Rio, do Rio de Janeiro, fazendo os arranjos e regendo boa parte delas, e criou o desenho rítmico da canção "Saveiros" (Dori Caymmi / Nelson Motta), que obteve o primeiro lugar na fase nacional e o segundo na internacional. Lançou pela Philips o elepê "O Grande Festival", com as músicas do certame, tendo recebido o Galo de Ouro pela sua atuação como arranjador e maestro. Apresentou na TV Rio e depois na TV Continental, um programa popular com Stelinha Egg, entremeando canções e filmes sobre o Brasil. Dirigiu shows de Elizeth Cardoso e Amália Rodrigues, no Canecão do Rio de Janeiro.
(Páginas 297/298, volume I, "Enciclopédia da Música Brasileira, Art Editora, 1977).
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