Latinidade
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 13 de julho de 1980
Há mais de 10 anos, quando << Cem Anos de Solidão >>, de Gabriel Garcia Marquez, escalou as listas de best-sellers falou-se, mais do que nunca, no << Boom >> da literatura latino-americano. Afinal, os autores do continente continuavam desconhecidos fora das fronteiras de seus países, com raras - e honrosa - exceções. E nos últimos anos, realmente se editaram muitos autores latinos-americanos, afora as << estrelas maiores >> (Borges, Cortazar, Puig etc.).
Com relação a música latino-americano parece ocorrer o mesmo, com algum atraso. Afinal, até há seis anos passados, era necessário viajar a Buenos, Santiago, Caracas ou mesmo Assunção para se adquirir um disco de cantor, instrumentista ou conjunto regional, fora do consumismo internacional. Mesmo a Argentina, cuja capital tem o tango como sua música por excelência, vivia a sombra de Gardel e, ainda e pedradas, do rebelde (hoje menos violento) Astor Piazzolla. O grande Anibal Trilo, o << Pichuco >>, morreu há seis anos passados, sem ter sequer um disco lançado no Brasil (o que só aconteceu postumamente).
Enfim, a música latino-amricana é um universo a ser descoberto. Que o diga Cleto de Assis, secretário da Comunicação Social, e um dos grandes apaixonados pelo gênero que conhece em profundidade. O governador Ney Braga, fã da boa música, sem fronteiras, já manifestou, por mais de uma vez, a intenção de promover em Foz do Iguaçu um grande encontro da música latino-americana, que poderá dar uma projeção internacional ao Paraná.
Mas, na verdade, há um longo caminho a ser percorrido. Felizmente, as primeiras veredas - via discos - começam a aparecer.
OS GRANDES (E TERNOS) DESCONHECIDOS LATINOS
Se Athahualpa Yupanqui (Hector Roberto Chaveiro), 72 anos, há 16 em Paris, escritor, violonista, cantador, declamador, repentista e sobretudo poeta de seu povo, ainda nunca esteve no Brasil, finalmente seus discos começam a aparecer. A Odeon reuniu suas composições mais notáveis num álbum duplo, edição de luxo; infelizmente sem a divulgação merecida. Mercedes Sosa, voz rebelde e que por isso mesmo há anos vem tendo problemas em países cujo regime político contradiz com a liberdade, finalmente pôde fazer uma longa excursão pelo Brasil. a Polygram, que havia lançado quatro de seus elepês, aproveitou para, durante a excursão, editar o belo << Cantata Sudamericana >>, obra de Ariel Ramirez e Félix Luna, onde acompanhada pelo conjunto vocal Los Arroueños, Mercedes mostra uma visão musical da criação argentina em termos sonoros. Da imensa discografia de Mercedes, aguardamos ainda outras obras básicas, como << Mujeres Argentinas >>, também uma obra de Ramirez-Luna, que já saiu há sete anos em Buenos Aires. Das duas apresentações de Mercedes que lotaram o Maracanãzinho, a Polygram gravou ao vivo os momentos mais emocionantes, agora lançados num elepê que vem enriquecer a sua discografia desta cantora de cabelos longos e escorridos, um rosto redondo de lua cheia que compõe a simplicidade desta cantora que não procura esconder as suas origens populares bem no seu modo de vida. Mercedes, que lembra uma grande mãe latino-americana, canta as dores as alegrias do povo, mas não se considera simplesmente uma cantora folclórica. Ela é uma cantora popular, sintonizada com as ansiedades do povo. << Popular e não popularesca >>, costuma se autodefinir.
A Bandeirantes Discos, uma etiqueta independente que tem distribuição e comercialização através da WEA, vem fazendo um excelente trabalho em termos de difusão da música latino-americana. Já colocou mais de trinta excelentes elepês no mercado, subindo inclusive ao México, com elepês como do grupo Folclorista, do maior significado musical e político. Em << Viva Argentina >>, Juca Silveira, com fonogramas cedidos por várias fábricas (Trova, Polygram, Odeon, Music Hall, Fonema), reuniu cantoras como a própria Mercedes Sosa (<< Quando Tenga La Tierra >>), conjuntos como o Quarteto Zupay << Camino Del Indio >>), Quinteto Clave (<< Chacarera Al Aire >>), o grande Atahualpa Yupanqui (<< El Alazan >>), como gente menos famosa - entre nós - bem entendido: Una Ramos, Carlos Vega Pereda, Jorge Cumbo, Maria Escudero, Daniel Toro, Huayra Puka. Destaque especial para duas faixas Jaime Torres em << Ireme Pues >> e o compositor Ariel Ramirez, pianista excelente, na zamba << Alfonsina Y El Mar >>, parceria com Felix Luna - que Mercedes Sosa tem como um dos pontos altos de seu repertório.
Abílio Manoel, português de nascimento, mas desde criança no Brasil, cantor e compositor, é apaixonado pela música latino-americana e tem se esforçado em divulgá-la entre nós.
Produz um programa de rádio e vem organizando discos com interpretes de vários países. Para a Bandeirantes já fez dois volumes da série << América do Sol >>, incluindo no volume dois grupos como os excelentes Quilapayun (há anos redicados no exterior, devido ao golpe do general Pinochet no Chile), Los Incas, Los Runas, Aymara, afora intérprete da importância de Daniel Viglieti (<< A Desalambrar >>), o cubano Pablo Milanes (<< Campesina >>), este, por sinal, agora tendo merecido a edição de seu primeiro lp individual no Brasil, via Ariola - que também percebeu das possibilidades deste mercado dos mais atraentes. Na mesma Bandeirantes, Sérgio Lopes organizou outra série - << América Latina Canta >>, onde reencontramos os grupos Quilapayun (<< Machu Pichu >>), Inti-Illima (<< Rin de Angelito >>), ao lado de Mercedes Sosa, Tito Fernandes, Los Graças, Los Folclorista e a família Parra: Tita (<< Amigos Tiengo Por Ciento >>), Isabel (<< La Jardineira >>), afora Victor Jara, assassinado em setembro de 1973, no Estádio Nacional do Chile.
<< Nueva Cancion Chilena >> (Copacabana/Inte musique) é outro elepê para se apreciar Violeta Parra (<< La Carta >>, << Plegaria A Un Labrador >>, << Que Dira El Santo Padre >>, << Al Centro de La Injustiça >>, << Gracias A La Vida >>), Angel Parra (<< La Democracia >>), Victor Jarra (<< Te Recuerdo Amanda >>) o grupo Quilopayon (<< La Muralla >>) ou Luiz Advis (<< Cancion Del Poder Popular >>). Aliás, Violeta Parra, nome maior da composição chilena, que se suicidou, por frustrações amorasas, há dez anos, já tem dois elepês lançados pela mesma Copacabana, o segundo com o título de << Canciones Ineditas >>. Seus filhos, Isabel e Angel Parra, dividem << Lá Peña de Los Parra >> - nome de um dos mais agradáveis ambientes musicais da capital chilena, que em setembro de 1973, quando Santiago vivia a euforia da vitória da Unidade Popular, tivemos o prazer de conhecer. Acompanhado pelo grupo Quilapayun, << Te Recuerso Amanda >> é um dos discos de Victor Jara , a disposição de seus admiradores. Além de sua música mais conhecida, Jara interpreta canções de Yupanqui, Viglietti, e até a musicalização de Sérgio Ortega do poema << Ya Parte El Galgo Terrible >> de Neruda, afora, obviamente, músicas do próprio Jarra. Sem contar uma versão para o espanhol da música do americano Peter Seeger (<< El Martillo >>).
O conjunto Inti-Illimani 5 já tem dois discos lançados no Brasil pela Copacabana: o volume 2 intitula-se << Canto de Pueblos Andinos >> e reúne músicas de autores menos famosos, mas representativos da Bolívia (<< Estudio para Charango >>, << senora Chichera >>), Peru (<< Solo de Quera >>, << Pascua Linda >>), Equadro (<< San Juanito >> e << Vasija de Barro >>), afora, naturalmente, temas do folclore argentino.
O Quilapayun, na opinião de Cleto de Assis o mais importante grupo vocal latino-americano tem editado no Brasil, também pela Copacabana, um de seus mais importantes trabalhos: a canatata popular << Santa Maria de Iquique >>, música de Luiz Advis, relatado por Hector Duvauhelle, sobre o massacre de milhares de mineiro do Sul do Chile, ocorrido no início do século. Uma cantata emocionante, verdadeiro documento da latinidade musical.
Não apenas nomes relativamente famosos, mas também intérpretes-autores novos dos países andinos, são editados pela Copacabana: é o caso de Patrício Manns, que << En Sueño Americano >> interpreta músicas como << El Nuevo Mundo >>, << Lá Traicion Del Mar >>, << Canto Esclavo >>, << Bolivariana >>, entre outros.
Afora a Bandeirante e a Copacabana, outras gravadoras se voltam ao mercado latino-americano. A CBS, aproveitando o acervo de suas representações dos países vizinhos, montou dois volumes de << América Latina de Hoje >>, reunindo, no segundo deles, grupos como Los Panchos, La Típica de Venezuela e Los Médicos, além de intérpretes como Cláudia de Colômbia, Ricardo << Chiqui >> Perecyra. Fito Giron, Popy. Já em Argentina de Hoje >>, volume um, uma seleção bem mais comercial, pouco representativa em termos documentais, mas que marca um momento pelo qual passa a música daquele país. Assim desfilam por este lp (CBS/Epic) grupos com títulos de The Music People, Industrial National, Trio San Javier, grupo Mirasol, Los Prados ou cantores como Sebastian, Elvio Marin e Daniel Magal.
A LATINIDADE NA VISÃO BRASILEIRA
Bastante oportuna é a experiência que Juca de Oliveira, um dos nomes mais conhecidos do teatro, cinema e televisão no Brasil, acaba de fazer: pela RCA, gravou << Fragmentos de Poesia Latino-Americana de Protesto >>, reunindo poetas do continente que Têm mostrado preocupação com os destinos do homem. Assim, na voz bela de Juca, vamos de Pablo Neruda a João Cabral de Melo Neto, passando por Nicolas Guillen e Carlos Drummond de Andrade. O lp é aberto por << A Carta no Caminho >>, com tradução de Thiago de Mello, para o poema de Neruda, seguido de << Pedidos >> (Juan Gelman), << Inventário de Cicatrizes >> (Alex Polari de Alverga), << Cemitério Pernambucano >> (João Cabral), << Cemitério do Sertão >> (Dom Pedro Casaldáliga), << Não Há Ventura Para Mim Fora de Ti >> (Ernesto Cardinal), << A Flor e a Náusea >> (Drummond), << Podes >> (Nicolas Guillen), << O Vidente >> (Castro Alves), << Epitáfio de Desterrado >> (Ernesto cardeal). Produzido pelo competente Fernando Faro, << Fragmentos da Poesia Latino-Americana de Protesto >> é um documento indispensável a quem interessa pela poesia do continente.
Mesmo a Isaec, de Porto Alegre, tendo encerrado suas atividades fonográficas, deve-se registrar um de seus lançamentos mais expressivos: << Los Caminantes >>. Um disco que como escreveu Ney Gastal, no << Correio do Povo >>, reúne << as nossas raízes, que explicam a força de toda uma região << que mesmo assolada por baianos e estrangeiros ainda é capaz de manter viva não apenas uma tradição, mas todo um fato cultural, todo um contexto musical >>.
Ocorre também o inverso na música: os cantores(as) brasileiros que entram em outros países Altemar Dutra, já consagrado pelo seu estilo romântico, gravou um elepê intitulado << Siempre Romântico >>, com << 25 boleros inolvidables >>, que a RCA fez pensando especialmente no mercado latino-Americano. E Altemar interpreta, em sua forma característica, boleros dos mais românticos, capaz de enlevar qualquer noite de amor...
Outra exploração na base do latinismo é a produção da RGE, << Roberto Carlos en... Tango>. O maestro Hector Lagna Fietta transformou no ritmo portenho alguns dos maiores sucessos de Roberto-Erasmo Carlos (<< Café da Manhã >>, << De tanto Amor >> , << A Distância >> , << Os Seus Botões >>, << Cavalgada >> etc.), num elepê de fácil consumo. Para quem gosta, fica a dica...
FOTO LEGENDA 1- América Latina Canta
FOTO LEGENDA 2- Juca de Oliveira
FOTO LEGENDA 3- Inti-Illinani canto de pueblos andínos
FOTO LEGENDA 4- Violeta Parra canciones ineditas
FOTO LEGENDA 5- América Latina de hoje
FOTO LEGENDA 6- América do Sol
FOTO LEGENDA 7- Roberto Carlos en... Tango Orquestra Hector Fietta
FOTO LEGENDA 8- Victor Jara te recuerdo Amanda
FOTO LEGENDA 9- Santa Maria de Iquique cartata popular texto música Luís Advis
FOTO LEGENDA 10- Altemar Dutra siempre romântico
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