Nem só de Gardel vive a música latino - americana
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 02 de março de 1977
Nunca os brasileiros visitaram tanto um país como a Argentina nestes últimos anos. A desvalorização do peso e as facilidades oferecidas aos turistas brasileiros transformaram, até há pouco, Buenos Aires no roteiro predileto da classe média brasileira, desnumbrada com as lojas de Calle Flórida, os teatros, os cinemas e principalmente, a noite porteña - o luxuoso Michelangelo, o agradável caño 14 ou o simpático El viejo Almacën, além do sofisticado - e caro - Karinas, para só citar os endereços mais famosos do roteiro turistico de Buenos Aires.
Mas toda a "invasão" brasileira não resultou, em termos musicais, em qualquer acréscimo falando em consumo de larga escala, para imensa música argentina - que continua, para nós, a ser identificada tradicionalmente por Carlos Gardel (Toulouse, França - 1887 - Medelin, Colômbia, 1935) em termos de tango tradicional ou Astor Piazolla, a partir de 1962, na renovação da música argentina. O imenso folclore argentino, as cantoras sofisticadas como Maria Elena Waldez, instrumentistas da dimensão de Eduardo Fallu, para só citar 2 exemplos, continuam a serem inéditos em nosso País. Os "compristas" brasileiros não incluíram em suas bagagens a música argentina - ainda desconhecida no Brasil, como desconhecida é a música do Chile, da Venezuela, da Colômbia, do Equador - e mesmo do Uruguai e Paraguai - num isolacionismo cultural injustificável. Se na literatura, foi preciso que " Cem Anos de Solidão" do colombiano Gabriel Garcia Marquêz freqüentasse as listas de Best Sellers, durante meses, para que os nossos editores sevoltassem aos chamados "escritores hispano - americanos", em termos musicais, o consumo da latinidade só despertou timidamente, no segundo semestre do ano passado, animado pela inclusão de músicas de Atahualpa Yupanqui ("Los Hermanos") e Violeta Parra ("Gracias a La Vida") no show "Falso Brilhante", de Elis Regina - há mais de um ano lotando teatro em São Paulo.
E se todo o sucesso financeiro da longa temporada de "Uma Noite em Buenos Aires" - Levada a várias capitais brasileiras, nada de novo trouxe , em termos de músicas ( apesar da edição de alguns lps, vendidos nos hall dos teatros em que o espetáculo foui apresentado ) , em Novembro , 76, uma programação culturalmente mais válida foi iniciada, com a vinda, infelizmente restrita ao eixo Rio - São Paulo, de duas das mais belas vozes argentinas - Susana Rinaldi e Mercedes Sosa, e de um grupo experimental - Los Luthiers , esses restritos apenas a 3 dias no Municipal de São Paulo, mas que devem retornar agora, em abril, com possivel escala uma noite no auditório Bento Munhoz da Rocha Neto. Como saldo destas temporadas, a Continental firmou convênio com uma das mais ágeis gravadoras argentinas, a Trova, e editou os elepes de Susana Rinaldi e Los Luthiers , enquanto que a Phonogram , afinal decidiu-se a apresentar ao público brasileiro um elepe de Mercedes Sosa , há muito já reconhecidamente uma das mais importantes interpretes argentinas.
TESOURO ESQUECIDO
Há dois anos , num escritório de um executivo da Phonogram, na calle Moreno 2038, em Buenos Aires , ouvi uma explicação:
- "Embora Vinícius , Toquinho, Maria Creusa e muitos outros artistas brasileiros sejam editados regularmente na Argentina, a contrapartida não existe: com exceção de Piazolla e Gardel, os "record - men" do Brasil não lembram-se da música argentina".
Não só de música argentina, como de outros países latino-americanos, num isolamento culturalmente dos mais prejudiciais , considerando a identidadecontinental, a riqueza do folclore e mesmo influências comuns - temática que justifica um longo ensaio e não um simples registro jornalístico.
A música argentina é de uma imensa riqueza - da voz grave Edmundo Rivero cantando milongas e tangos no "El Viejo Armacém", aos experimentalismo de Piazzola e de Buenos Aires 8, entre outros grupos que procuram dar novas formas ao tango, passando também a música do interior da Argentina, pois como escrevia há 4 anos o jornalista Milton Eric Nepomuceno, um dos poucos especialistas na música latino-americana, "passando a marcar dos 200 kilômetros da capital, em direção ao porto de Rosário, nas margens do Paraná, já se começa a perceber que há, na Argentina, uma verdadeira coletânea de ritmos e expressões musicais que receberam influências da colonização espanhola em seu país e nos países vizinhos. As mesmas guarânias e polkas que aparecem no Paraguai cederam parte de suas estruturas para as canciones de Paraná, que a partir de Rosário, vão seguindo a rota do rio até a fronteira com a Bolívia".
Mas para a região centro-oeste, estendendo-se até a fronteira com o Chile, e mais ao norte, com a Bolívia , para formar um triângulo entre Mendoza, Salta e Santa Fé, o que existe é o Zamba, o carnavalito, o riojana, a chacarera ou a santiagueña (de Santiago del Estéreo) - entre tantos ritmos que embora já registrados em discos, e com folcloristas e intérpretes que os levam mesmo a auditórios de universidades, permanecem inéditos para a maioria do grande público. A diferença mais importante entre a Argentina e os países vizinhos - além da maior - riqueza e diversificação musical - está no fato de que lá existem, além dos conjuntos e grupos que apresentam as músicas em sua forma original, outros grupos que dedicam à pesquisa musical e poética das formas folcloricas.
Assim, o pianista e compositor Ariel Ramires, presidente da S. A I. C. (Sociedade dos Compositores Argentinos), a partir de 1964 vem desenvolvendo uma série de trabalhos com base no folclore: "Missa Criolla"- gravada pelo grupo Los Fronteirizos, um dos mais populares grupos vocais-instrumentais argentinos e que prosseguiu com "Natividad Nuestra", "Los Caudillos" (1965), "Mujeres Argentinas" (1969) e "Cantata Sudamericana" (1972) - estas duas últimas na voz de Mercedes Sosa, 41 anos, filha de uma humilde família de Tucuman, 13 lps gravados, e que tem se dedicado, com um imenso vigor, a concretizar aquilo que diz a letra de uma das mais belas músicas de Morelli ("Cantor de Ofício"):
Eu canto sempre o meu povo
Porque o povo é minha voz
Se eu pertenço ao povo
Somente dele será a minha canção.
A MÚSICA CONTINENTAL
O som desolado e nostalgico das flautas de taquara desce das encostas andinas. Nos anti-planos da Bolívia, o canto é o mesmo de mais de mil anos atrás. N o Peru, há um choque entre a música litorânea, feita pelos espanhóis e o que restou da música dos quechuas. Em Buenos Aires, o choque é entre tangos, milongas e músicas de vanguarda. Mas no centro, em direção ao Chile e Bolívia, sobrevivem ritmos nascidos da mistura do som dos índios e dos colonizadores - com inúmeras variações e muita riqueza melódica. O Chile, até 1973, preocupava-se muito com a música social - e as canções românticas de Violeta Parra, autora de "Gracias a La Vida" (que suicidou-se em 1970, ao ver frustrada sua paixão violenta por um jovem de 18 anos), misturava-se aos protestos sociais do canto de seus filhos, Angel e Isabel, na Penã de los Parra, uma casa onde se bebia um bom vinho e se ouvia boa música, num bairro de Santiago.
Em vários países sul-americanos, a música apresenta muitas variações. Mas há um ponto em comum na música que vai do interior da Argentina até o centro do Peru, passando pela Bolívia e pelo norte do Chile; o som de algumas formas musicais com mais de mil anos. Esse imenso tesouro está a espera de ser descoberto - num trabalho que por certo demorará ainda muito, em que pese um momentâneo interesse de jovens compositores brasileiros, como Belchior ou Zé Rodrix em se dizerem "latino-americanos" ou, com mais seriedade, Milton Nascimento dividindo faixas de seu último elepe ("Garaes", Odeon, dezembro/76), com o grupo chileno Água ou a cantora Mercedes Sosa, cantando uma das mais belas músicas de Violeta Parra - "Volver a los 17", que diz verdades como estas:
"Volver a los 17
despues de vivir um siglo
es como decifrar signos".
No ano passado, muito timidamente, a RCA Victor, multinacional que dispondo de fábricas em toda América Latina poderia fazer um grande trabalho de aproximação musical, editou três elepes dentro de um modesto envolucro: "Folclore Latino- Americano". Sem qualquer sentido didático, misturou grupos, instrumentistas e intérpretes de vários países e gêneros, como o peruano conjunto Maccho Piccho, com "El Condro Pasa" (Daniel Alamias Robles, transformando anos atrás em sucesso internacional pelos astutos Simon & Garfunkel), Los De Salta, Los Chalchaleros, El Cuartero Santa Cecília o grande folclorista atahualpa yupang (hoje radicado em Paris), Hermanos Abalos, Los Chalchaleros, Suma Paz, Los Supays, cantores como Tabare Etcheverry, José Larralde, Rolando Alarcon, Ginette Acevedo, José Laraude, Alberto Rey etc e instrumentistas da dimensão de Eduardo Fallu, além de, numa "presença" brasileira - incluir a curitibana Estelinha Egg ("Lamento Negro") e a Goiânia Ely Camargo ("O Canto da Sereia"). Eduardo Fallu, a quem foi reservado uma modesta faixa (" Com El Adios") é, na Argentina, uma espécie de Baden Powell do violão: nascido em Salta, dedicando-se ao violão desde a infância, a partir de 1956 vem excursionando por vários países, europeus e Estados Unidos, dedicando-se tanto a composição como ao recolhimento de temas folclóricos. Embora nunca tenha atuado no Brasil - onde a Phonogram deveria editar os seus discos, já dedicou uma sensível homenagem ao mais brasileiro de nossos ritmos: o digno choro "Reminiscências Baianas" gravado em 1972, no seu lp "Palabras a mi guitarra". Outro instrumentista argentino da maior importância é Jaime Torres que faz música típica da Região Norte da Argentina, com muita influencia da música do Sul da Bolívia, acrescida de bom conhecimento de música de vanguarda. Partindo de um instrumento limitado - o charango ( espécie de violão na caveira de boi) , Jaime Torres consegue momentos de grande vanguarda musical com seu grupo, em um trabalho que chega a lembrar o desenvolvido, 10 anos passados, por Hermeto Paschoal, Theo de Barros, Heraldo do Monte e Airto Guimorvan Moreira, no histórico Quarteto Novo.
O produtor Marcus Pereira , concluído o "mapeamento musical do Brasil", com os 16 básicos elepes da Música Popular das regiões Nordeste, Centro Oeste-Sudeste, Sul e Norte (esta última série editada no final do ano passado), planeja agora um mapeamento latino - americano. Desafio dos maiores - mas também dos mais estimulantes, pelo o que pode proporcionar de revelação - já que desconhecemos praticamente tudo o que se refere a música de nosso continente. - desde os cantos folclóricos indígenas aos trabalhos mais difíceis , como a cantata de Santa Maria do Iquique, do chileno Luís Advis, gravada pelo conjunto Quilapayun. Enquanto isso , os norte-americanos vão descobrindo - e faturando - em cima deste tesouro: o peruano tema "El Condor Pasa" enriqueceu a Simon & Garfunkel e "Gracias a la Vida", na voz de Joan Baez, foi a faixa mais tocada de seu elepe gravado em 1974.
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