A música de Carnaval (III) - Libertação dos escravos, o grande tema deste ano
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 12 de fevereiro de 1988
Brasil afora, em cidades grandes ou menores nas quais existam escolas-de-samba, um tema marcará dezenas de sambas-de-enredo: o centenário da Lei Áurea. Afinal, sendo uma festa de grandes conotações com a cultura afro-raiz-mãe do samba - é natural que neste ano de 1988 a temática rememore os cem anos da libertação da escravatura. Em Curitiba, já no sábado, no desfile das escolas do grupo B, a "13 de Maio" - de raízes negras até em seu nome e tradição - estará levando na Avenida Marechal Deodoro o belo samba de Nelson Santos, 51 anos, "Nunca Mais, Outra Vez...":
"Este Brasil maravilhoso
Tem uma história da história / pra contar
De gente que veio de longe
Do outro lado do mar
Acorrentados aos tumbeiros, os escravos
Foram os bravos / Mãos de obra na nação".
Em São Paulo, pelo menos duas escolas do grupo 1 saem também com saudações aos 100 anos de liberdade (liberdade?) do povo negro. Dom Marcos, puxador e co-autor (com Roná Gonzaguinha / Edinho / Xixa / Minho), de "Quilombo Catopês do Milho Verde (de Escravo a Rei da Festa)", samba-de-enredo da G.R.E.S. Colorado do Brás, canta:
"Quilombo espalhou suas raízes
E fez sua semente germinar
Em ricas terras mineiras
Do milho verde vem um canto pelo ar".
Com uma letra mais trabalhada, "Filhos de Mãe Preta", de Joaquinzinho / Benê, é o samba da Unidos da Peruche, também de São Paulo:
"Eh! Mãe África / Espalhando seus filhos no mundo
Este Banzo tão profundo
Que despertam num segundo
Quando alegre a caminhar
Tantas estrelas a brilhar ao léo
Não é brinquedo de Isabel
Pixinguinha e Clementina
Uma festa que domina
É uma luz que vem do céu".
Cinco das grandes escolas do grupo 1A do Rio de Janeiro estão saindo com a mesma temática. O G.R.E.S. Portela, com "Lenda Carioca, Os Sonhos do Vice-Rei" (Neném / Mauro Silva / Isaac / Luizinho / Carlinho Madureira) começa com a saudação:
"Está fazendo um centenário
A Portela em louvação
Voa com a liberdade
A águia e o negro
Num só coração".
Campeoníssimo nos últimos anos, o Beija-Flor de Nilópolis, tendo Neguinho puxando o samba-de-enredo "Sou Negro, do Egito à Liberdade", conclama:
"Vem amor, cantar agora
Os cem anos de libertação
A história e a arte dos negros escravos
Que viveram em grande aflição (...)
Eu sou negro, e hoje enfrento a realidade
E abraçado à Beija-Flor, meu amor
Reclamo a verdadeira liberdade
Raiou o sol, sumiu, e veio a lua
Eu sou negro, fui escravo
E a vida continua".
O G.R.E.S. Unidos da Vila Isabel concentra sua homenagem a partir da figura eterna de Zumbi, em "Kozmba, Festa da Raça" (Rodolpho / Jonas / Luiz Carlos da Vila):
"Valeu, Zumbi! O grito forte dos Palmares
Que correu terras, céus e mares
Influenciando a abolição".
Mas de todos os sambas-de-enredo deste Carnaval, em torno da Abolição, o mais crítico é o "100 Anos de Liberdade, Realidade e Ilusão" (Hélio Turco / Jurandir e Alvinho), que puxado pelo grande Jamelão (José Clementino dos Santos, 75 anos), pode ajudar a G.R.E.S. Estação Primeira da Mangueira conquistar mais uma vitória:
"Será...
Que já raiou a liberdade
Ou se foi tudo ilusão
Será...
Que a Lei Áurea tão sonhada
Há tanto tempo assinada
Não foi o fim da escravidão
Hoje dentro da realidade
Onde está a liberdade
Onde está que ninguém viu".
O refrão deste samba-de-enredo vai, por certo, ter um coro de milhares de vozes no desfile da Marquês de Sapucaí, no domingo:
"Moço, não se esqueça que o negro
também construiu
As riquezas do Brasil".
Com o samba dos excelentes João Nogueira e Paulo César Pinheiro, o G.R.E.S. Tradição sairá com "O Melhor da Raça - O Melhor do Carnaval", cantando: "Salve a mistura da raça / Que nunca vai se acabar / Até o dia da Graça chegar".
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