Nostalgia nos enredos carnavalescos de 1985
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 03 de fevereiro de 1985
Dom Manolo, um dos mais experientes record-men da fonografia tupiniquim e que hoje preside a RCA no Brasil, foi o primeiro produtor a sentir as potencialidades do samba-de-enredo. Tanto é que até hoje o seu selo, Top Tape, é que detém o contrato com a Associação das Escolas de Samba do Rio de Janeiro para a edição dos elepês com os sambas-de-enredo do primeiro e segundo grupos. Integrando-se a RCA, é por esta multinacional gravadora que saiu o elepê dos Sambas de Enredo do grupo I, catituado desde o final do ano passado e que está entre os mais vendidos.
Comparando-se aos sambas-de-enredo de anos anteriores, percebe-se que os compositores das grandes escolas cariocas - que nas noites dos próximos dias 17 a 19 de fevereiro, estarão, novamente, apresentando um dos mais belos espetáculos populares do mundo - sentiram que com o desaparecimento dos sambas e marchinhas que faziam o carnaval de antigamente, hoje o samba-de-enredo pode deixar a avenida e chegar até nos clubes. Por isto, as letras quilométricas, confusas - tão bem ironizadas pelo inesquecível Stanislau Ponte Preta (Sérgio Porto, 1923 - 1968) em "Samba do Crioulo Doido", deram lugar a trabalhos mais objetivos e diretos, com estribilhos facilmente assimiláveis e imagens que eliminam citações e palavras difíceis de serem aprendidas pela massa.
Por exemplo, dos 12 sambas-de-enredo das escolas de samba do grupo I do Rio de Janeiro, mais da metade procura traduzir sonoramente o enredo ligado aos aspectos de nostalgia, numa volta "aos bons tempos" - curiosamente num ano em que o Carnaval poderia ter uma motivação calcada em termos políticos de uma redenção democrática da Nova República dos tempos tancredistas. Assim a Estação Primeira da Mangueira ("Abre Alas que eu quero passar"), Unidos da Vila Isabel ("Parece até que foi ontem"), Portela ("Recordar é Viver"), Caprichosos de Pilares ("E por falar em saudade...") tem, em comum, uma temática de (re)valorização do passado. Mesmo a Beija-Flor de Nilópolis, com seu afinado Neguinho puxando o samba-de-enredo "A Lapa de Adão e Eva" e enaltecendo o bairro boêmio do velho Rio de Janeiro, falando em Madame Satã, os cinco autores mostram-se tristes perante às transformações sofridas pela cidade:
Hoje meu Rio é Cidade de Babel/Emoldurado neste meu painel.
Política parece brincadeira/Camelô levou rasteira
Circo não tem opção/Gay é sucesso/Futebol exportação
A própria estrofe do samba não deixa de ser documentalmente crítica, ao criar um novo verbo para ser conjugado em nosso colonialismo musical:
Vem, lourinha... vem sambar
O crioulo só quer Michael-Jeklar
De braços abertos, Redentor pede ao pai (o quê)/Pra perdoar
Dos doze sambas-de-enredo, das grandes escolas, apenas três fazem homenagens a figuras tradicionais. A União da Ilha do Governador, em "Um Herói, Uma Canção, Um Enredo", refere-se, mesmo indiretamente, ao marinheiro João Cândido, da revolta da Chibata no início do século - e que com a imagem de "Dragão dos Mares" já havia sido personagem do belíssimo samba de João Bosco/Aldir Blanc. Acadêmicos do Salgueiro em "Anos Trinta, Vento Sul-Vargas", reverenciam a ainda mítica de Vargas, saudado apoteoticamente ("Rufam os tambores do Salgueiro/Exaltando Vargas/O grande estadista brasileiro").
Custódio Mesquita (1910-1945), pianista, boêmio e autor de clássicos da MPB ("Mulher", "Rosa de Maio" etc.) é referenciado pela Império da Tijuca ("Se a Lua Contasse"), mas, infelizmente, o samba de Jorge Cauto/Ademir Jacaré/Moacir Mangueira não tem a beleza que o homenageado mereceria. A Império Serrano vem com um samba-de-enredo ("Samba, suor e cerveja, combustível da ilusão") que mais parece um jingle da Brahma e propõe um novo tempo de verbo etílico ("Haja frio ou calor/Cervejando lá se vai o dissabor"), enquanto a Estácio de Sá se volta aos chorões, com um bonito samba de Djalma Branco/Caruso e Djalma das Mercês. Entre tanta nostalgia, a Mocidade Independente de Padre Miguel foi a única a partir para o futuro, com seu "Ziriguidum 2001", no qual Ney Vianna lança sua mensagem futurista:
Desse mundo louco/De tudo um pouco/Eu vou levar, pra 2001
Avançar no tempo/E nas estrelas/Fazer meu ziriguidum
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