Quando os ursos sonham
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 16 de janeiro de 1990
"A maior emoção não está em matar. Mas em deixar viver".
(James Oliver Curwood)
Em 1953, Walt Disney (1901-1966) realizou um documentário de longa-metragem que fez tanto sucesso quanto seus desenhos animados e emocionou adultos de todas as partes: "O Drama do Deserto" (The Desert Living), que aumentou a coleção de Oscars do produto. Buscar na natureza temas para curta-metragens revelou-se uma área tão rica quanto os inúmeros personagens que desenvolveu em seus cartoons de longa-metragem (a partir de "Branca de Neve e os Sete Anões, 1937) e o sucesso de "O Drama do Deserto" o estimularia a investir em novos longas na área - um material, aliás, que em breve deverá pipocar em vídeo, já que há um público imenso a espera deste tipo de produções.
Mas, se Disney, com sua visão sempre glamorizada, buscou a natureza em documentários tamanho família, ao longo da história do cinema outros cineastas detiveram-se de forma mais insólita e realista sobre aspectos do mundo animal em sua relação com o homem - espraiando-se, assim, uma filmografia imensa, inclusive com títulos assinados por documentaristas da dimensão do americano Robert Flaherty (1884-1951) e o holandês Joris Ivens (1898-1989), para só citar os dois exemplos mais significativos.
Portanto, foi aparentemente normal que um cineasta formado no perfeccionismo do cinema publicitário mas que ao longo de uma carreira de longas tem buscado temas originais, o francês Jean-Jacques Annaud, 47 anos, tivesse colocado sua câmara sensível em torno de um tema que, a primeira vista, pode ser classificado como da natureza: "O Urso" (Cine Bristol, 5 sessões).
Entretanto - e aqui concordamos com o colega Luiz Carlos Merten, d'O Estado de São Paulo - este é um filme que não pode ser resumido a uma classificação esta que : fala sobre a natureza, mas não é (só) um documentário sobre a vida selvagem. Suas cenas são forjadas, pois, ao contrário do que faziam os cinegrafistas de Disney - as câmaras não foram ocultas. Annaud buscou excelentes treinadores, contratou animais nascidos em cativeiro para contar uma história. Nas cenas de violência, os animais vitimados pelo urso Bart, são bonecos criados por Jim Henson (da série Muppets), tanto é que, no final, há o aviso de que não houve nenhum animal ferido ou maltratado durante as filmagens - antes que os ecologistas internacionais saíssem em protestos.
Uma história extremamente simples - "The Grizzly King", de James Curwood, que, na infância, encantou o roteirista Gerard Brach (colaborador favorito de Roman Polanski) foi, há anos passados, lembrado como o ponto de partida para um filme que o produtor-diretor francês Claude Berry se propôs a financiar após ter assistido "A Guerra do Fogo" (La Guerre du Feu, 81), o segundo longa de Annaud - que tinha estreado, 5 anos antes com a irônica comédia "Preto e Branco em Cores" (La Victoire en Chantan, 76), premiada inclusive com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Só que no meio do caminho apareceu Umberto Eco com seu imenso êxito ("O Nome da Rosa") e antes que algum outro aventureiro das imagens lançasse mão daquela história fascinante, Annaud quebrou lanças para filmá-lo - o que fez com brilhantismo, aliás. Mas "O Urso" não foi esquecido: a produção estendeu-se em demoradas pesquisas, cenários etc. para, finalmente, em 1987, o filme ser rodado e montado. Lançado na França, conquistou crianças e adultos, valendo a Annaud o Cesar (o Oscar francês) de melhor diretor e rendendo US$ 100 milhões somente na Europa.
Uma história de extrema simplicidade - dois ursos e dois homens (aos quais, soma-se, no final, um terceiro) numa caçada pelas montanhas. O desafio do grande animal, a ternura do filhote Douce - que perde a mãe numa avalanche de pedras e adota o imenso (700 quilos) Bart, como pai - e o segue, ajuda-o quando é ferido - e juntos permanecem na floresta.
As imagens do fotógrafo Phillipe Rousselot ("As Ligações Perigosas") capturam as belíssimas regiões (Alpes italianos, Colúmbia britânica, no Canadá) em que foram feitas as filmagens e a trilha sonora de Phillipe Sarde está entre as mais belas dos últimos anos - com seus toques sinfônicos, grandiloqüentes e uma não creditada influência das "Barcarolas" de Tchaikovski - como anotou o atento Luiz Carlos Merten.
Mas ao lado da competência técnica - e que tinha que existir, mesmo muito conhecimento para obter "intrepretações" tão convicentes dos animais - "O Urso" é um filme ternura, com sentimentos e que se permite tomar liberdades como de fazer o ursinho Douce ter viagens lisérgicas após saborear champignons - em seus sonhos coloridos, criados por Brestilav Pojar, dos estúdios Barrandov, de Praga, uma bamba em efeitos especiais.
Ternura, amor pela natureza, sensibilidade - a simplicidade da vida dos animais, a caçada pelos homens (mas que se revelam bons no final) fazem com que "O Urso" passe ao espectador a mesma sensação do sonho mágico do ursinho Douce - em todo o seu encanto visual: se os ursos podem sonhar com imagens coloridas, porque nós, seres humanos, não devemos mergulhar no barato de uma viagem tão pura, sincera e honesta com esta que Annau nos propõe nesta fábula ecológica?
LEGENDA FOTO - A preparação de uma das seqüências mais difíceis de serem filmadas em "O Urso": a perseguição do filhote pela feroz puma num rio torrencial. Uma assistente-treinadora prepara os animais. O filme está em exibição no Bristol.
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