Quiproquó da Nova República (com o balanço de Martinho)
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 18 de fevereiro de 1988
Os marajás foram merecidamente alfinetados nos sambas enredo das escolas de samba, de forma que ao menos no aspecto crítico, a música de Carnaval cumpriu sua função. Claro que faltaram marchinhas com letras mais reduzidas, capazes de cair na boca do povo, nas ruas e salões, para que os escândalos administrativos, a debacle da Nova República, a inflação e outros fatos que infernizam a vida do brasileiro tivessem a devida caricatura musical carnavalesca - como sempre acontecia no passado.
A sátira política, a música de protesto, amordaçada pela ditadura militar por 20 anos, retornou agora, vejam só, até nas letras dos roqueiros, conforme já registramos dias atrás. Se há 18 anos passados, o "Apesar de Você", de Chico Buarque, havia provocado a ira do presidente Médici, pela conotação óbvia da letra com a sua pessoa - assim como, dois anos antes, "Pra não Dizer que não Falei de Flores", vencedora do III Festival Internacional da Canção - e cantada em coro no Maracanãzinho, fez com que o seu autor, Geraldo Vandré, então com 33 anos, tivesse que procurar o exílio, hoje pouca gente se preocupa com as músicas de protesto.
Os tempos são diferentes. A repressão acabou e os protestos se esvaziaram. Isto explica que uma das mais interessantes músicas do último elepê de Martinho da Vila (Martinho José Ferreira, 50 anos, completados no último dia 12), incluída no seu elepê "Malandro" (lançado pela RCA, no final do ano passado), tenha passado despercebida: "Quiproquó".
Parceria do instrumentista Rildo Hora, excelente executante de harmônica de boca, compositor e produtor de todos os discos de Martinho, com letra de Affonso Romano de Sant'Anna, professor, poeta, ensaísta, cronista do "Jornal do Brasil" (onde substituiu a Carlos Drummond de Andrade).
Já tendo escrito vários ensaios sobre MPB (reunidos em livro, edição Vozes), Affonso Romano de Sant'Anna tem algumas parcerias - a partir dos primeiros trabalhos com Fagner - um compositor sempre atento em colaborações literárias de gente competente.
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Contundente em suas críticas aos donos do poder, fazendo uma poesia participante, Affonso Romano de Sant'Anna produziu versos irônicos e inteligentes, que ganharam bonitas harmonias de Rildo Hora e uma interpretação astuciosa de Martinho da Vila. Apesar disto, a gravação ficou despercebida até agora - três meses após o lançamento do disco. Talvez se a Censura tivesse proibido - ou intervido - por certo a repercussão seria grande, mas como isso não aconteceu, muita gente pensou que o "Quiproquó" seria, a exemplo de "Apesar de Você", a reclamação de dor de cotovelo de um apaixonado traído. Mas o destinatário é bem explícito, como já havia sido na música de Chico: o presidente da República.
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Vejam a letra de "Quiproquó", que até poderia ter acontecido no Carnaval, se os programadores das FMs / AMs não fossem tão idiotizados em preferir o supérfluo lixo pop internacional do que a melhor música brasileira:
"Você
Chegou prometendo pra nós vida nova
Que havia mudado e podia dar prova
Você mentiu, você mentiu
E eu, eu fui na conversa fazendo de novo planos
Carente que estava depois de sofrer tantos anos
Acreditei, que ingenuidade
Cheguei até a comprar, investir e pensar no futuro
Zombava de quem me olhava sorrindo seguro
Eu fui feliz, eu fui feliz
Porém
Agora que tudo acabou aprendi a lição
Você não me pega de novo na sua armação
Pois pra mim não dá mais não
Vou confessar
Sentimental
Que o nosso caso de amor, não passou
De um quiproquó nacional, que pintou
Já me cansei do seu blá, blá, blá
Você precisa de ter mais vergonha na cara, ô cara
Você precisa de ter mais vergonha na cara, ô cara".
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