Sentimentos profundos
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 15 de novembro de 1984
Em abril último, logo após a projeção de "Nunca Fomos Tão Felizes", no Festival de Cinema de Gramado, RS, Murilo Salles nos contava que se havia uma grande influência/homenagem na sua fita, era, sem dúvida Elia Kazan, e, especialmente, "Vidas Amargas" (East of Edem, 1954). No comentário que publicamos, enviado do Festival, registramos esse detalhe, enquanto toda a imprensa nacioanl, ali representada, embora colocando a produção nas alturas (e lhe conferindo, ao final, o prêmio de melhor filme), não se lembrava de salientar esse posicionamento de Murilo.
Entre o conto "Alguma Coisa Urgentemente", de João Gilberto Noll, que baseou o roteiro de Alcione Araújo, e o clássico "A Leste do Eden", de John Steinbeck (que, há 30 anos passados, foi levado ao cinema por Kazan), não há pontos em comum. Entretanto, em sua sensibilidade criativa, Murilo Salles viu no adolescente que, de repente, sai do colégio religioso em que vivia há muitos anos e tem um reencontro misterioso com o pai, muito do atribulado Cal - o inesquecível personagem ao qual James Dean (1931-1955) deu aquela interpretação inesquecível. Já nos primeiros planos externos, logo que pai e filho deixam o colégio do Interior e se dirigem para o Rio de Janeiro, há uma sequência que parece nos remeter as imagens que abriam "Vidas Amargas", um dos primeiros filmes rodados em cinemascope pela Warner.
O que mais pode aproximar um filme brasileiro, refletindo uma estória subjetiva e extremamente huis clos sobre os anos da repressão, a uma obra ambientada na Salina dos anos 20, é a emoção de seus personagens. E a sensibilidade do diretor Salles, procurou fazer uma obra de identificação pai-filho.
Como ele mesmo diz em depoimento sobre o filme, não quis contar a "história" - de "Nunca Fomos tão Felizes" porque o filme pulsa com a necessidade dos personagens se encontrarem "e com a nossa própria necessidade de identificá-los. É preciso estar de olhos, corações e mentes abertos".
Explicar esse filme "seria uma tentativa de aprisionar uma imagem em movimento e o que há de mais rico nesse fenômeno: a poética e o canal de trânsito com o espectador - a emoção - é incontrolável. O propósito Salles descarta engajamentos maniqueístas em termos políticos.
- "O filme se recusa a ser ideolizante, isto é, não narra com um determinado fim: simplesmente interioriza. Discuti-lo, sim, será saudável, até mesmo para aliviar a tensão".
"Nunca Fomos tão Felizes" é um filme camerístico. Parece uma obra musical, com seus vários movimentos - e, à proporção que as belas imagens de José Tadeu Ribeiro se sucedem, vai se compondo um esplêndido painel de sentimentos. Os personagens falam pouco e dizem muito em suas atitudes. Isso traz uma proposital lentidão no timing, capaz de afastar o público menos identificado com linguagens mais modernas. Entretanto, é um dos muitos aspectos que têm valido tantos elogios ao filme - premiações em Gramado (roteiro, fotografia e de crítica), e Brasília (melhor filme), e a importante participação na quinzena dos realizadores, no último Festival de Cannes.
O filme se compõe de personagens e isso exige interpretações profundas, no que há a revelação de Roberto Bataglin (filho de um veterano ator dos anos 50, com o mesmo nome) no enigmático personagem central, Cláudio Marzo, como seu pai, e Suzana Vieira, como uma amiga distante e misteriosa. Todo o elenco é estruturado num clima que Murilo Salles, com uma grande competência, conseguiu desenvolver. Especialmente o sentido da orfandade - o adolescente perdeu a mãe ainda criança e foi criado por estranhos (em "Vidas Amargas", Cal descobre que a mãe não havia morrido, como lhe haviam dito, mas era uma prostituta, numa cidade vizinha) - é que emociona. O personagem foi criado num colégio, sem ter notícias do pai, até o instante em que este vai buscá-lo para morar com ele. Mas isso não chega a se concretizar, efetivamente, e a solidão aumenta no apartamento vazio da cidade grande. Situação um tanto inexplicável à luz da razão, mas que poeticamente é desenvolvida com precisão.
Dentro do novo cinema brasileiro, "Nunca Fomos tão Felizes" é um filme que não apela nem a grosseira pornografia (não há, praticamente, cenas eróticas), nem fica na política explícita ou na denuncia de problemas sociais. É um filme íntimo, de sentimentos, muito bonito. Que merece ser visto. Esta semana, no Cine Groff.
LEGENDA FOTO - "Nunca Fomos Tão Felizes": um filme de sentimentos (Roberto Bataglim, ao fundo a Suzana Vieira)
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