Bezerra da Silva com o sambandido
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 06 de julho de 1986
A coincidência de terem sido lançados num mesmo mês (maio/86) os novos elepês do veterano Moreira da Silva, carioca de Tijuca, 84 anos completados no último dia 1° de abril ("Cheguei e Vou Dar Trabalho", Top Tape) e do pernambucano (José Bezerra da Silva, 49 anos (Älô Malandragem Maloca o Flagrante", RCA) fez com que as comparações fossem inevitáveis e os registros da imprensa aproximassem os dois intérpretes.
Realmente, há pontos em comum entre o veterano Moreira da Silva - o criador do famoso "breque" no samba (e que tinha no falecido Jorge Veiga outro cultor) e, Bezerra da Silva, o que de "rei do coco", passou a ser um divulgador de compositores anônimos dos morros cariocas, numa linguagem espontânea, realista - apelidada de sambandido e que está presente em seus elepês - após uma série feita na CID (ainda em catálogo, a preços de ocasião - ao redor de Cz$ 40,00, mas somente em supermercados e lojas de departamentos) e, especialmente, nos discos feitos na RCA ("É esse aí que é o Homem", "Malandro Rife"), que tem vendido de cem a duzentas cópias.
Percussionista da orquestra da Globo, profundamente identificado com o espírito de uma malandragem carioca, Bezerra da Silva é hoje observado com curiosidade e atenção pelo linguajar que traz nas letras que interpreta - justificando o "dicionário de malandragem" que consta do encarte deste seu elepê.
Tarik de Souza ("Jornal do Brasil", 23/04/86), na mais lúcida análise dos vários comentários provocados pelo LP de Bezerra da Silva observou que este intérprete (que há 5 anos se limita a gravar músicas de autores quase ocultos por codinomes como Popular P..., Alicate de Niterói, Roxinho, Pedra Butina, Evandro do Galo, Barbeirinho do Jacarezinho e 1000tinho), "salpica certa variedade no arroz com feijão dos partidos altos uníssonos de seu LP". Assim há um ponto de macumba ("Vovô Cantou pra Subir"), o samba sincopado ("Na Boca do Mato", de Luiz Grande, gravado anteriormente por João Nogueira), a denüncia dos dedos duros ("Línguas de Tamanduá") e até uma defesa do marginal Escadinha feita por Beto sem Braço em "Meu Bom Juiz").
Assim como o repórter Chaim, da televisão e rádio, criou um personalíssimo estilo, com sua linguagem identificada ao universo da marginália/Malandragem, também Moreira da Silva traz nas letras de suas músicas todo um vocabulário próprio - das intrincadas numerações do Código Penal (157 resume "assalto a mão armada"; artigo doze é "tráfico de drogas"), às mais esotéricas associações de imagens (dividida - troca de tiros com a polícia; cachanga - barraco) vale tudo.
Sociologicamente (e por que não, lingüísticamente), os discos de Bezerra da Silva são interessantíssimos. Traduzem toda sua vivência da pesada - com tiros, sirenes de polícia, cadáveres, dedos-duros, marginais que saem das músicas, com força, vigor - mas muito humor. Nada poderia ser mais brasileiro - ou especificamente carioca, retratando a violência de nossos dias - até um pouco diverso da malandragem cantada (e contada) por Moreira da Silva (cujo elepê aqui comentamos há um mês).
Ao lado da riqueza temática, do aspecto realmente popular das músicas que traz, "Alô malandragem, maloca o flagrante!" é assim um disco bem acabado, com arranjos encaixados ao espírito pretendido. Um lançamento marcante e insdispensável a quem sabe apreciar as coisas brasileiras.
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