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Aramis

Cinema e Literatura no feminismo de um século

Há uma semana, na entrevista com Claude Lelouch, no Rio Palace Hotel, RJ, o cineasta de "Um Homem, uma mulher: 20 anos depois", falou longamente das relações entre cinema e literatura. Analisando o seu próprio caso - de cineasta amado pelo público mas incompreendido por parcelas da crítica (que raramente tem sabido valorizar devidamente seus filmes), Lelouch lembrou que a partir do cinema falado os intelectuais passaram a ver a linguagem cinematográfica como uma extensão da literária. Mas, entretanto, nem sempre, um filme consegue transpor o texto pretendido - numa rivalidade imagem x palavra. As observações de Lelouch, um cineasta que sempre marcou seus filmes (e já realizou 29, em 30 anos de carreira) pela força das imagens, vem a propósito de "Os Bostonianos - um triângulo diferente" (Cine Luz, 4 sessões), exemplo de filme-literatura. Autor dos mais difíceis da língua inglesa, o norte-americano Henry James (Nova Iorque, 1843 - Londres, 1916), vem desafiando cineastas e tem várias adaptações de suas novelas e romances. O conteúdo de suas tramas e, sobretudo, a profundidade de sua linguagem torna difícil a simples visualização das histórias que deixou. Para um norte-americano que viveu muitos anos na Índia - onde realizou a maior parte de sua obra, como James Ivory, 59 anos, a transposição e tela de "The Bostonians", publicado há exatamente cem anos passados, não deixava de ser um suave desafio. O resultado é um filme de fôlego e garra, mas que exige um mergulho do espectador num universo sufocante, como a própria sociedade que a obra retrata. Extremamente bem cuidado, com uma perfeita cenografia (Tom Walden Don Carpentier) e esmerada fotografia (Walter Lassaty), "Os Bostonianos" transpõe o simples limite de um filme-história. Há um século, Henry James já discutia a questão da liberação da mulher, na criação de um triângulo audacioso para a época - o domínio sexo-político-ideológico que uma mulher de grande carisma, Olive Chancellor, exerce sobre uma jovem talentosa, Verena Tarrant, mas desejada também por um advogado de idéias conservadoras, Basil Ransome, que uma análise superficial poderia ser classificada de machista. Roteirizado por Ruth Prawer Jhabvala, colaboradora de Ivory em sua fase indiana, "The Bostonians" é um filme propositalmente lento, sufocante, embora visualmente belíssimo. Um exemplo de filme que exige um tour de force de seus intérpretes - que no caso foram bem escolhidos. Para Christopher Reeves, marcado com o estigma de Superman - a série que o lançou internacionalmente - o papel do angustiado Basil Ransome é, sem dúvida a chance de provar suas qualidades de ator, numa responsabilidade tão grande quanto Jessica Lange teve que vencer para deixar a imagem da mocinha de "King Kong", que a lançou no cinema. Duas coadjuvantes - a veterena Jessica Tandy como Miss Birdseye e a ótima Linda Hung (Oscar de melhor coadjuvante em "O ano em que vivemos em perigo", 1984) tem daquelas intervenções que permanecem na retina do espectador e cujas personagens ficam a merecer reflexões posteriores. Mas é nas relações entre Olive (Vanessa Redgrave) e Verena (Madeleine Potter) que se configura a grande dualidade da história de Henry James. De um lado, a mulher experiente, lésbica e feminista que vê na jovem, pura e talentosa adolescente, dominada primeiro pelo pai charlatão (que encena forças espirituais para a recepção de suas "mensagens do além"), e depois, passa a servir a um movimento feminista claudicante - até ser despertada pelo amor de um homem. Até onde as feministas de 1986 aceitarão - e entenderão - a sutil crítica pretendida, há um século por Henry James na análise do comportamento das primeiras sufragistas bostonianas e, especialmente, na liderança de uma lésbica no movimento? Esta é uma das questões que o filme propõe. Para interpretar a jovem Verena, a escolha recaiu numa nova atriz - Madeleine Potter, primaveril, suave e extremamente feminina. Numa criação quase do oposto, Olive Chancellor é vivida de forma dura, masculinizada - embora tremendamente forte - por Vanessa Redgrave, 50 anos, que, merecidamente, obteve indicação ao Oscar de melhor atriz - concorrendo com Judy Davis ("Passagem para a Índia") , Sissy Spaceck ("The River"), Jessica Lange ("Country") e Sally Field, a vencedora por "Um Lugar no Coração" (A place in the heart, de Robert Benton). "The Bostonians" também teve indicação ao Oscar de melhor figurino (Jenny Beavan / John Bright), perdendo, entretanto para Theodor Pistek, por "Amadeus"- que foi, aliás, o grande vencedor dos Oscars no ano passado. Requintado, profundo, difícil entretanto, em sua absorção, "Os Bostonianos - um Triângulo Diferente " é sério e profundo. Uma obra que comporta análises de várias formas - o cinema e a literatura, o feminismo, as relações absorventes entre as mulheres - enfim, uma obra de arte, inteligente, merecedora de atenção de um público que saiba apreciar filmes de qualidade.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
13
24/09/1986

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