A musica de Carnaval (II) - Camisinhas e marajás, nas marchinhas de 88
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 11 de fevereiro de 1988
Entre as 143 partituras reunidas pelo grupo editorial Vitela no seu álbum "Carnaval 88", existem apenas nove que foram lançadas para o Carnaval 88 - das quais nenhuma mereceu um trabalho de divulgação em nível nacional, a menos em termos fonográficos. Pela força da televisão, Chacrinha conseguiu fazer "Bota a Camisinha" (parceria de João Roberto Kelly / Leleco) ganhar alguma popularidade nas últimas semanas, pela oportunidade do assunto: "Bota a camisinha / Bota meu amor / Hoje tá chovendo / Não vai fazer / Bota a camisinha no pescoço / Bota no geral / Não quero / ver ninguém sem camisinha / Pra não se machucar no coração".
O mesmo mote está em "Marcha da Camisinha", que tem mais autores do que palavras em sua pobríssima letra: Carlos Monterrey, Mauro de Almeida, Carlos Sodré e Djalma Costa somaram seus intelectos para produzir seis linhas indigentes, numa música que sequer teve gravação em disco: "Eu vou sair, na sua bandinha / Só de camisinha, só de camisinha / Eu vou / Eu preciso me cuidar / Porque essa praga tá querendo me pegar".
Há três anos, quando a AIDS ainda não assustava tanto, Jayme Janeiro, Wilson Janeiro e Leonardo Piacussi, saíram com a marcha "Aids Vai te Pegar", gravada por Teobaldo e que advertia: "Cuidado, rapaz / A doença está no ar / Se você dormir no ponto / Aids vai te pegar / Você pode dar a mão / Você pode até abraçar / Mas se você beijar na boca / Aids vai te pegar".
A marchinha não pegou e ficou no esquecimento, embora agora esteja no álbum dos irmãos Vitalle, para ser tocada nos bailes.
Entre 94 marchas que estão no álbum dos irmãos Vitalle - 80% de sucessos dos anos 30 a 50, apenas seis são marchas novas. Gugu Liberato, que graças a TVS, em seu "Viva à Noite", transformou-se num ídolo nacional - e agora passa para a Rede Globo - seguindo o exemplo de Silvio Santos (que todos os anos grava também marchinhas carnavalescas) ataca com duas marchas: "Fio Dental" (Monique) e "Marcha da Bicharada", ambas de Roberto Manzoni / João Roberto Kelly (o último dos compositores carnavalescos de talento a insistir no gênero), e o próprio Gugu. Enquanto "Fio Dental" fala de tesão que Monique provoca ("Socorro, socorro / Não faz assim / Senão eu morro / Se você botar a saia / Não vai nadar na minha praia"), "Marcha da Bicharada" não é, como pode parecer, uma exaltação gay (tema sempre presente no Carnaval), mas pode até servir para animar os bailes infantis: "Vejam só / Que turminha engraçada / Parece todo mundo / Uma grande bicharada".
Duas outras marchas novas, foram gravadas por seus autores-intérpretes, em compactos independentes - e que, portanto, só ficaram restritos a divulgação no Rio de Janeiro: Baianinho em "A Banda do Mestre Sodré", enaltece um carnavalesco que "vem regendo a banda / Com animação / Todo mundo canta e dança / Dentro e fora do salão". Já Aldacir Louro em seu "Hino do Helênico" da um recado meio de circuito fechado, a partir da autodefinição: "Eu sou helênico / Tenho certeza que você também será / Venha conhecer a nossa casa / E uma família que você jamais esquecerá / Tem samba, tem feijão e tem mulata / A alegria no helênico é geral / Vem ver a nossa curtição do Rio / O nosso lazer semanal".
Um samba de muitas estrofes que Os Originais do Samba gravaram há meses - "A Malandragem Entrou em Greve", de Bráulio de Castro e Jorge Belizário, entrou no catálogo da Vitalle como samba inédito para o Carnaval 88. Dificilmente alguém cantaria um samba de 366 linhas como este - apesar da letra satírica ao momento brasileiro. João Roberto Kelly é o próprio intérprete do "Rio dá Samba", lançado em gravação independente, tentando reviver o samba-exaltação carioca:
"No Rio de Janeiro / Tem samba o ano inteiro / Com cuíca e pandeiro / Cabrocha, mulata / Pagode e pandeiro / Tem o biquíni na areia / E a tanguinha sensual / Mas o carnaval / É pra lá de fio dental / O Rio dá samba / Da Rocinha ao Jacaré / Do Salgueiro à Mangueira / Venham ver como é que é".
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Um dos aspectos mais fascinantes da música carnavalesca - e que faz com que "O Carnaval Carioca Através da Música", de Edigar de Alencar (634 páginas, Francisco Alves Editora, em 4ª edição), seja uma obra que mostra a própria história não oficial do comportamento do brasileiro através da irreverência carnavalesca - praticamente desapareceu: a crítica social, a alfinetada aos políticos, o reflexo do cotidiano e do comportamento. E, convenhamos, que nesta época de tantos escândalos e corrupção, não faltariam motes para compositores inspirados satirizarem os donos do Poder.
Por exemplo, a Constituinte não ganhou uma única marchinha. Os marajás entretanto mereceram uma marcha de Elzo Augusto, Ivan Chelles e Santos, sem registro em disco mas editada pela Intersong, com um refrão facilmente assimilável: "Será que dá (será)? / Será que dá / Pra derrubar o marajá / Marajá no Brasil / Tem tem bastante / Todo mundo viu / Todo mundo viu / Mas ninguém caiu / Do elefante".
Há cinco anos, os "pacotes" oficiais já eram satirizados por João Roberto Kelly ("Pacotão"), e agora, Mauro de Almeida, Carlos Sodré e Djalma voltaram ao mesmo tema, numa composição independente, sem gravação e sem edição - ou seja, condenada ao total anonimato. Também a letra embora pretendendo fazer crítica, é de uma pobreza franciscana: "Estou de saco cheio de pacote / de pacotinho e pacotão / Estou de saco cheio de pacote / de pacotinho e pacotão / Isso é plano de urubu / Eles entram com a cara / E o povo com o tutu".
LEGENDA FOTO - Chacrinha e João Roberto Kelly: dois velhos guerreiros que ainda insistem em fazer marchinhas carnavalescas.
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