Ler para crer
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 18 de novembro de 1984
Vai por aí um ano: o telefone tocou, era um deputado que queria ir à Ilha falar comigo. Pelo nome, Mário Palmério, não pertencia à que um velho amigo chama a "minha bancada" - e que aliás anda muito desfalcada , ultimamente...Não dou sorte para reeleição.
Declarei que receberia com muito prazer Sua Excelência - e fiquei pensando que é que Sua Excelência queria comigo. A hora era de crise política e, pelas informações que tomei, nós dois nos situávamos nos pólos opostos dessa mesma crise.
Mas não era o deputado que vinha me ver. Era o escritor. Sua Excelência trazia debaixo do braço um original datilografado que desejava que eu lesse. Como todo candidato a estreante, posso dizer que vinha tímido. Me tratou um pouco como medalhona, usou das cortesias de estilo, logo a conversa descambou para a hora política, fez-se boa camaradagem em casa, ele explicou muito pouco o livro e partiu.
O livro era este Vila dos Confins. A primeira qualidade que me impressionou no escritor Mário Palmério foi este cheiro de terra, que o seu livro traz, tão autêntico. A gente tem a impressão que ele nos entrega para ver, na sua integridade primitiva, aquele rio, aquela mata, aqueles bichos, aqueles caboclos, aquelas histórias de caçada e pescaria, que parecem histórias de mentiroso, de tão saborosas. Essa poesia de floresta e rio, tão difíceis de captar, sem cair na ênfase.
Outra qualidade importantíssima é que o homem tem linguagem. O homem escreve. Coisa raríssima um escritor jovem, um escritor estreante, que cuida devidamente do seu instrumento de trabalho, que sabe lidar com ele e se preocupa não apenas em contar uma história ou em explicar idéias, mas, antes de tudo, em escrever.
Porém o importante, acima de tudo, é que o autor de Vila dos Confins é um escritor mesmo. Este livro aqui não é absolutamente trabalho de diletante feito para aproveitar ócios de político ou para dar vazão a represas de recordações e saudades. É obra de um escritor, isto é, de um homem que nasceu dotado especificamente para escrever, como outros nascem dotados para cantar de tenor, outros para fazer cálculos mentais, outros para tocar violão elétrico. Este nasceu para a pena. Custou um pouco a descobrir o seu dom de nascença - ou tinha medo dele; o que aliás foi um bem, pois lhe permitiu amadurecer fora das gambiarras e estrear com obra de que não terá de ser envergonhar mais tarde.
Não acredito em prefácios e não gosto de prefácios. Se o livro é ruim o prefácio não adianta e se o livro é bom o prefácio é uma excrescência. Mas neste cas, como me sinto uma espécie de madrinha ou descobridora de Vila dos Confins e dos méritos profissionais do seu Autor, creio que não estou fazendo prefácio. Estou apenas dizendo ao público que neste nosso difícil, atormentado ofício, tão precário em alegrias, entrou mais um recruta, que não apenas irá longe, porque já vai longe.
É ler para crer. (Rachel de Queiroz)
Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1956.
Enviar novo comentário