As vozes maravilhosas que o tempo só faz melhorar
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 18 de setembro de 1988
Selma, uma bela mulher, double de professora universitária (trabalhando há anos numa tese sobre a ideologia do músico paranaense) e, sobretudo, cantora de excelente bom gosto, vai deixar Curitiba. Ganhou uma bolsa de estudos para a França, onde, apesar do alto custo de vida, quer ficar dois anos. Quem sabe, dentro em breve não estará fazendo carreira como solista. Talento não lhe falta e ainda há algumas semanas, na jam-session com o Zimbo Trio, estraçalhou cantando modernos (e antigos) temas, que aprendeu ouvindo as fitas que um de seus maiores admiradores, o vice-presidente do Blue Note Jazz Club, Caetano Rodrigues tem lhe preparado - orientando e melhorando o seu repertório que, no passado, teve outro consultor artístico, o americano Phil Young, 49 anos, este também um cantor afinado - uma espécie de Tony Bennett made in Ohio que veio para o Brasil, apaixonado pela Bossa Nova e aqui foi ficando há 17 anos. Hoje próspero dono de uma das melhores escolas de inglês do país, dividindo seu tempo entre a Flórida (onde mora sua esposa, a escultura, Maria Julia e as filhas), Phil não tem tido tempo de percorrer a madrugada, encantando com suas interpretações do repertório de Sinatra - ou mostrando novidades, como canções de Mark Murphy - um tremendo cantor, na linha de Al Jarreau e Bob McFerrin, que ele está tornando conhecido em Curitiba.
Com Selma em Paris e Phil voltando a Flórida, esvazia-se ao vivo, nosso já pequeno mundo musical - mas resta o consolo de ouvir grandes vozes em discos. E, felizmente, as etiquetas tem sido pródigas, lançando o que há de melhor de vozes do passado e do presente, em edições extremamente bem cuidadas.
Singers - Com esta denominação, temos nada menos que três álbuns - um duplo, pela WEA, na (excelente) série Atlantic Jazz (no total formada por nove volumes, indispensáveis) e dois na Columbia Jazz Masterpieces, com seleção entre as mais belas vozes - aparecidas nos anos 40/50.
Uma espécie de mergulho não apenas nostálgico, mas num período em que paralelamente às grandes orquestras, com nomes dos mais competentes, a figura do crooner se destacava - e nunca custa lembrar que Frank Sinatra passou pelas bandas de Gommy Dorsey e Harry James enquanto Ella Fitzgerald praticamente começou como crooner da orquestra de Chick Webbe.
Assim, no "Jazz Singers", da CBS, começamos com a incrível Maxime Sullivan acompanhada por John Kirby e sua orquestra num registro de maio de 1940 com um tema que é uma espécie de logotipo do jazz ("St. Louis Blues", W.C. Handy), seguindo-se Joe Turner com Joe Sullivan & His Cafe Society ("Low Down Dirty Shame Blues"), Mildred Bailey cantando "I'm Nobody's", enquanto Jack Teagarden, mostrando seu duplo talento de trombonista e cantor em "Jack Hits the Road".
Cab Calloway, 81 anos - um dos raros remanescentes da maioria dos artistas que participam destes álbuns - mostrou em temporada no "150" do Maksoud Plaza que continua em forma, e nesta antologia comparece com "Topsy Turby", registrada há 48 anos.
Impossível, num certo registro jornalístico, detalhar tantas jóias vocais que passam por um verdadeiro documento como este - Billie Holiday ("All of me"), Anita O'Day ("Skylark"), Roy Eldridge ("Knock me a kiss"), Nat King Cole fazendo dueto com June Christy e Sarah Vaughan num registro de "Summertime", de 1949.
No volume dois, a seleção é mais diversificada com alguns nomes que, como solistas, não chegaram a ter maior destaque no Brasil, mas que marcaram seus trabalhos em bandas marcantes: por exemplo, Lee Wiley, que trabalhou com Bobby Hackett & his Swinging Strings canta "Streets of dreams", enquanto Hop Lips Page estraçalha em "There ain't no flies on me" ou a surpreendente Dolores Hawkins traz a onomatopaica "Oooh-Wee!", ou Betty Roché acompanhada nada menos pela orquestra de Duke Ellington mantinha em 1952, para cantar a própria música-prefixo da banda, "Take the "A" train" (de autoria do saxofonista Billy Strayhorn, e não de Duke como muitos pensam). Há, claro, aqueles nomes standarts, como Billie Holiday, em fim de carreira, numa gravação com a Mal Waldron's All Stars cantando "Fine and mellow", em registro feito em dezembro de 1958, apenas 7 meses antes de sua trágica morte. Louis Armstrong, com toda sua bossa, com o clássico "Mack the Knife", Sarah Vaughan em "Mean to me", Joe Williams no delicioso "Hey! bartender, give that man a drink" ou a notável Betty Carter com a popular "Frenesi". Encerrando, uma curiosidade: o trio vocal Lambert, Hendricks & Rass com "Charleston Alley".
O álbum duplo montado por John Snyder para a Atlantic, com o imenso material de seu acervo transpõe áreas com muito mais liberdades - no período de 1955 (Ray Charles, "Hard times") até o The Manhattan Transfers ("Sing joy springs"), numa gravação feita há apenas três anos.
E em 22 faixas intermediárias, desfilam vocalistas que, autonomamente, já têm um público no Brasil - como Mel Thormé ("Whisper not"), Betty Carter ("The good life"), Esther Philipe ("Confessin' the blues"), Carmen McRae ("I got it bad and that ain't good), Aretha Franklin ("Moddy's Mood"), Peggy Lee ("Don't let me be lonely tonight") e Sarah Vaughan ("Something"), até vocalistas que, apesar de explêndidos e importantes, não chegaram até agora a merecer maior promoção individual no Brasil: Jimmy Witnerspoon, Joe Mooney, La Vern Baker, Ruth Brown, Helen Merril, Lurlean Hunter, Ann Richards, Mose Allison, Chris Connors, Nancy Harrow, Earl Coleman e Al Hibler. Uma faixa, para nosso ufanismo: João Gilberto cantando "Desafinado" (Tom/Newton Mendonça), na gravação original (Rio, 19/10/62), com próprio Jobim ao piano.
Os álbuns solos - se os três volumes de "Singers" oferece uma grande panorâmica do Jazz (com incursões, obviamente, em gêneros relacionados como Blues, Soul, Gospel, etc. - especialmetne na seleção da Atlantic), há também os álbuns solos. Billie Holiday (1915-1959) teve duas de suas obras-primas incluídas na coleção Jazz Masterpieces (CBS) - "The Quintessencial Billie Holiday", nos volumes I (1933/1935) e II (1936). Como disse o curitibano Roberto Muggiati, "é o disco na sua função de matéria de memória, mergulhando-nos em plena depressão (econômica), época em que as pessoas tentavam se emocionar com baratas canções de amor". Levada por John Hammond para a Columbia, em 27 de novembro de 1933, Billie ali gravava com a orquestra de Benny Goodman, "Your mother's son-in-law", iniciando uma carreira fonográfica que só terminaria 26 anos depois, em abril/59 (quatro meses antes de morrer, vítimas das drogas e bebida) - mas que a consagraria como a mais significativa, emocionante e profunda cantora da história do Jazz - Lady Jazz, primeira e única, nesta antologia de seus anos em que estava na melhor forma. Muitos discos de Billie tem aparecido no Brasil, mas poucos tão significativos como este.
Mais popular no Brasil do que Billie Holiday, Ella Fitzgerald, 70 anos completados no dia 25 de abril (sem as comemorações que mereceria), hoje surda, gravemente doente, está praticamente aposentada. Mas graças a reedições de seus discos, podemos apreciá-la em momentos magníficos, especialmente em produções de Norman Granz, da Verve Records - com quem fez seus melhores álbuns. Gravado ao vivo, durante uma temporada do Jazz at the Phillarmonic, no Deutschlaundhallen, em 1962, "Ella em Berlim" (Verve/Polygram) captura toda a força de Ella, acompanhada por Paul Smith no piano; Jim Hall na guitarra; Wilfred Middlebrooks (baixo) e Cuss Johnson (bateria), cantando standarts como "Gone with the wind", "Misty", "The lady is a tramp", "The man love", "Summertime", "Mack the knife" (subtítulo do álbum), "How high the moon", aos quais sabia dar leituras únicas.
Billie morreu há 29 anos. Ella está aposentada. Sarah reduz cada vez mais suas apresentações - embora ainda em forma. Mas as cantoras não param e, com outras mídias, propostas e estilos, continuam, como provam as presenças de Joni Mitchel ("Chalk mark in a rain storm", Geffen/WEA), a efusiante Madonna com todo seu marketing comercial ("You can dance", Sire/WEA), a nova Tifanny (MCA/WEA) ou a cantriz [cantora-atriz] Cher (Oscar, melhor atriz/88, por "Feitiço da lua"). Mas, cá entre nós, vamos deixar estas para ouvir (e falar) depois. Principalmente porque, após o mergulho nas vozes maravilhosas dos singers dos anos 40/50, seria até covardia qualquer comparação.
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