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Aramis

Nas memórias de Booker, o Paraná ficou esquecido

Dentre os muitos temas e personagens que aguardam pesquisas para o enriquecimento da música popular, está, sem dúvida, a vida do saxofonista e pistonista Booker Pittman. Especialmente para quem se interessa por jazz, o fato de um dos grandes instrumentistas americanos ter vivido oito anos, no Norte do Paraná (1949-1957), na pior fase de sua vida, oferece aspectos curiosos, para entender como um músico que era admirado por Count Bassie e Louis Armstrong chegou ao ponto de, alcoólatra, toxicômano e doente, ser expulso até dos mais decadentes bordéis. E se havia as esperanças desse período da vida de Booker ter algum esclarecimento, por parte de anotações que ele deixou e das memórias de sua viúva, Ofélia Pittman, no recém-editado "Por Você, Por Mim, Por Nós" (Editora Record, 175 páginas, fevereiro/1985), elas desaparecem. Pouco mais de 15 linhas são dedicadas a esses longos anos em que o grande músico viveu no Paraná - sem qualquer detalhamento. xxx Ofélia (que faz questão de assinar com "ph", na grafia antiga), nascida em São Paulo, a 9 de junho de 1922, esposa de Booker nos últimos 12 anos de sua vida, intercala o retrospecto de sua vida ao da do seu marido. Infelizmente, abalado pela doença que o mataria em 13 de outubro de 1969, Booker só pôde desenvolver os primeiros capítulos. Assim, as 11 primeiras páginas do livro são dedicadas a lembrar seu avô materno, Booker Taliaferro Washington (1856-1915), educador que fundou o Tuskegee Institut, no Alabama, primeira escola dedicada à educação dos negros, após o fim da escravatura nos Estados Unidos. A partir do quarto capítulo, após descrever suas primeiras experiências musicais, as memórias de Booker vão se tornando incompletas, com longos saltos, e contendo no máximo indicações de temas, que, decerto, pretendia desenvolver. Naturalmente que se tivesse tido condições de trabalhar mais nas memórias, colocando informações relacionadas com sua vida artística, especialmente nos anos 30/40, esse seria um importante livro para a precaríssima bibliografia jazzística. Afinal, quando Booker veio para o Brasil, em 1936, estimulado pela amizade com o brasileiro Romeu Silva (Rio de Janeiro, 11/2/1893 - 1/5/1968), era um nome já respeitado nos meios jazzísticos. Já havia trabalhado com Count Bassie (1904-1984) e integrado vários grupos, que atuavam desde o Texas (ele nasceu em Farimount Heights, Maryland, em 03/10/1909, mas passou a infância e a juventude em Dallas) até Nova Iorque. Filho de um arquiteto, o segundo de três irmãos, Booker começou ainda garoto a interessar-se pelo pistão e, depois, pelo saxofone, instrumentos dos quais se tornaria virtuose. Seus primeiros trabalhos foram em 1927, em Dallas, com um grupo chamado Blue Moon Chasers, animando bailes de estudantes. A segurança de Booker no instrumento o levaria a ter chances com outros grupos e nos anos 30 já tocava em Nova Iorque, trabalhando em templos de jazz, inclusive o histórico Cotton Club (que é o tema do novo filme de Francis Ford Coppola, recém-estreado nos EUA). Com Blanche Caloway, em 1931, fez algumas gravações na RCA Victor, trabalhando depois, com a banda de Ralph Cooper, que, a exemplo de outras orquestras, tinha sua popularidade ampliada por programas de rádio e apresentações, em todo o País. Integrou, também, a banda do trompetista Jap Halen, que tinha, entre outros integrantes, o sax-tenorista Ben Webster (1909-1973). Em 1932, Booker integrava uma orquestra dirigida por Pocky Millinder, que, contratada pelo empresário Irving Mills, foi para a Europa, apresentando-se em Paris e Monte Carlo. Booker ali ficou quase três anos, quando, conhecendo Romeu Silva, líder de uma orquestra que fez várias temporadas de sucesso no Exterior, decidiu vir para o Rio de Janeiro, trabalhar no Cassino Atlântico. Menos de um ano depois, juntando-se a outros músicos norte-americanos que vieram para a América do Sul (trompetista Jack Braggs e baterista Lovey Price) formou o chamado "Swing Stars", estreando, em 1937, no Hotel Ramble, em Buenos Aires. Capital cultural da América do Sul, Buenos Aires fervilhava nos anos 30. Ali encontrou um esplêndido campo de trabalho, que o levaria a liderar sua própria orquestra, contratada da Confeitaria Odeon, em 1938. Nascida, também, uma grande amizade com E. Ortiz Oderigo, possivelmente o maior estudioso de jazz do continente, autor de mais de 20 livros a respeito. Booker tocava clarinete, sax-alto, pistão e ainda cantava, em sua big-band, que tinha como arranjador o pianista Adrian Russo, procurando, naturalmente, o repertório das grandes orquestras na época - Artie Shaw, Benny Goodman, Bassie, Jimmy Lunceford, Duke Elllington, etc. Apesar da popularidade, essa orquestra de Booker nunca chegou a gravar. O fim do grupo aconteceu devido a uma lei nacionalista que obrigava que fossem tocados 15 minutos de música estrangeira para 30 de nacional. Resultado: em 1946, Booker voltava ao Brasil, contratado pelo Cassino de Santos. Meses depois, porém, com a posse do presidente Eurico Gaspar Dutra, o jogo era proibido e centenas de músicos ficavam desempregados, inclusive os da orquestra de Booker. A partir de então, a história do músico torna-se obscura. Por razões que o livro não esclarece, Booker acabou no Norte do Paraná, onde viveu oito anos. Sobre esse período, nas páginas 139/140 de "Por Você, Por Mim, Por Nós", há apenas simples anotações. Por exemplo, após a indicação "Paraná/Jacarezinho" - as referências "Clube-Danças", "Hotel Esperança - D. Elisa, a cozinheira. Caçando rãs e bebendo". Marília, SP, é citada a seguir - sem qualquer outra anotação, mas indicando que por lá o músico também passou. Em seguida, sobre Santo Antônio da Platina, vêm as indicações: "Família de Nelson, músicos; tipografia: Povo: hospitaleiro - zona/Rita". Na época, a revista "Manchete" chegou até a noticiar a morte de Booker Pittman. Isso explica um dos poucos textos nos quais Booker se referiu a esse período. Eis tal como está no livro. "Cornélio Procópio. Empenhei o saxofone, chave quebrada, circo a maestro (azar). Pintando casas na zona. Muito frio: abatido noites e dias. Então, naquele sábado, à tarde, Paile Cordelle (vendedor de perfumes) viajou de Londrina para Cornélio Procópio. Ele descobrira, por alguns amigos, que eu estava trabalhando na zona, pintando casas. Ele me achou por volta do meio-dia. Ele estava com a revista Manchete nas mãos e perguntou se eu entendia português. Eu disse que sim. Então, me mostrou, pela primeira vez na minha vida, a minha morte. Como tinha acontecido, etc. Devo dizer que estava muito bem-feito. Você não sabe da emoção de você ler sua própria morte. De repente eu, com a cabeça enevoada pela cachaça, olhei bem dentro de mim mesmo e fiz um repasse da minha vida. Não podia pensar que eu, que já estivera nos melhores cassinos da Europa e dos Estados Unidos, um dia estava ali, descalço, sem roupas, maltratado por causa da bebida. O "de repente" veio tarde em minha cabeça. Comecei a chorar. Eu senti desespero por pensar que não podia mais tocar. Fiz tudo na vida para poder tocar meu sax e, estava ali, olhando aquela "manchete", sem poder entender o que acontecera comigo". Nesse ponto, o relato de Booker é interrompido por uma "Nota de Ofélia", que diz: "Booker já não sabia nem de sua mãe, nem de seus irmãos, mas tinha forte vontade de voltar a tocar. Prometeu a si mesmo que, se saísse dessa, nunca mais voltaria a fazer as mesmas coisas. Foi numa dessas oportunidades que passou na zona um amigo de Booker, com fazenda em Santo Antônio da Platina, e lhe ofereceu para ele ficar numa fazenda que ficava a três horas de carro da cidade. Booker foi com o cachorro Tex, dois cobertores, garrafão de cachaça e sal. Nessa ocasião, ele via aranhas andando nas paredes. Como o rapaz ficou dois meses sem voltar, um sitiante foi quem mostrou a ele onde estavam a batata, o milho, o mamão; era só pegar e comer. O cachorro Tex saía, voltando sempre com uma galinha entre os dentes, até que um dia o mataram. Booker voltou para a cidade e foi redescoberto no meio musical". A ação passa então já para 1957, com indicações de sua volta artística. Em São Paulo, Booker tocou nas boates da moda da época - Cave, Michel e com um grupo de amadores apaixonados pelo Jazz tradicional, inclusive Edouard Vidossich (autor de 4 livros sobre jazz e hoje vivendo modestamente em Blumenau), que fez parte do São Paulo Dixelanders. Nessa época, Louis Armstrong (1900-1971) passou pelo Brasil e, em seu concerto, no Teatro Paramount, em São Paulo, chamou Booker ao palco, tocando juntos. Na platéia estava Ofélia, que foi cumprimentá-lo nos bastidores. Nascia um relacionamento que prosseguiria até sua morte. Enfrentando, ainda dificuldades econômicas, só em dezembro de 1959 Booker foi para o Rio, participar da orquestra contratada para inauguração da Boate Plaza. A imprensa começou a destacá-lo e, num show no Little's Club, lançaria como cantora a menina Eliana, filha de um casamento anterior à Ofélia. Começava uma carreira, com um primeiro elepê gravado na Rozembliet, logo seguido do "New Sound - Brasil Bossa Nova". Convidados por Jack Parr para participar de um programa na TV norte-americana, Booker, Eliana e Ofélia foram para os Estados Unidos e, até sua morte, nove anos depois, a carreira de Eliana, como cantora, internacionalizou-se. Poucos meses antes de morrer, Booker e Eliana se apresentaram no Santa Mônica Clube de Campo, em Curitiba. Na ocasião, a cobertura que O Estado do Paraná deu ao evento foi tão grande que a prefeitura de Santo Antônio da Platina aprovou o título de cidadão honorário a Booker. Que, infelizmente, jamais pôde ir recebê-lo.
Texto de Aramis Millarch, publicado originalmente em:
Estado do Paraná
Almanaque
Tablóide
06/03/1985
Meu avo era militar na época de 1932 e desapareceu com a vinda dos revolusionarios ... vc pode me dizer algu a respeito sobre Santo Antonio da Platina?? Na epoca?

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