Ramiro atira certo na ironia colorida
Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 03 de agosto de 1991
Nos anos mais duros da repressão - especialmente após a edição do AI-5 - os festivais de música popular preocupavam as autoridades militares. Afinal na briga de gato & rato com a esquerda intelectual, uma das saídas para as cabeças pensantes que desejavam contestar o regime verde-oliva estava em utilizar a ironia, a leitura subliminar, a sátira em letras que pudessem conquistar o público. Depois que "Caminhando" ("Para não dizer que não falei das flores") de Geraldo Vandré, então com 33 anos, ficou em segundo lugar no II Festival Internacional da Canção (68), sendo imediatamente proibida e levando seu autor a deixar o Brasil, a vigilância aumentou e centenas de músicas inscritas em festivais foram censuradas antes de serem apresentadas.
Ramiro Rebouças, 50 anos, viveu aquela época de contestação juvenil e idealística antes de se radicar em Cascavel - onde reside desde 1969. Compositor e intérprete, venceu vários festivais e tem uma obra tão participativa que, durante anos, evitava permitir sequer que alguém a gravasse temendo represálias. Irônico e inteligente, satirizou fatos & gente da cidade, inclusive numa explosiva concorrente na edição de 1982 do Fercapo, que por abordar um crime político ali ocorrido (o assassinato de um jornalista da oposição ao então prefeito) fez com que o clima do festival fosse a maior voltagem, obrigando esquemas de segurança para que a concorrente pudesse ser apresentada (não sendo sequer classificada para a final).
O tempo passou, os ventos liberalizantes chegaram e hoje a censura não atrapalha mais a criatividade dos compositores. Ramiro, entretanto, continua satírico e inteligente em seus versos e deu uma prova disto ao disputar o 19º Fercapo (27 a 29 de julho) com "Opereta de um tiro Só", que foi a mais aplaudida pelo público e recebeu o troféu de melhor comunicação. A razão é óbvia: Satírica do início ao fim do governo Collor, representou o momento de contestação política numa mostra em que muitas músicas buscavam temas ecológicos - aliás, um dos modismos nestes últimos festivais em muitos estados.
A letra de "Opereta de um Tiro Só" merece ser divulgada e é de se lamentar que este ano, ao contrário do que aconteceu entre 1987/88, as finalistas do Fercapo não ganhem sua preservação num elepê.
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Atirou na perdiz e matou o cachorro
Tinha uma bala só e não soube atirar
Atirou na inflação e matou a nação. O que faz arma na mão de quem não sabe usar
Nos prometeu o primeiro mundo que arrocho/que sufoco/que situação
Tem gente aí que está comendo aquilo
Tem gente que diz que aquilo não vai ter mais não
Descamisado já virou faquir
Pra ver se a grana do mês chega até o fim
Tem cidadão que dispensou o cachorro
e à noite ele mesmo late no jardim
Reconstrução virou demolição
Estão arrasando com tudo não vê quem não quer
E o social vai pela contramão
Nesse maluco projetão "salve-se quem puder"
Não tem saída sem um passaporte
É um meio de transporte pra sair daqui
Como dizia o Sr. Ponte Preta
Está mais para urubu
Que pra colibri
Vamos chegar ao desemprego pleno
E entrar na modernidade do ano dois mil
E o povo roxo de desesperança
Já perdeu a confiança (puxa que Brasil)
Nosso país está com o saco cheio
De enfrentar o diabo feio
Doce recessão
E ELLE ainda diz que tem o dele roxo
E faz o seu "comercial" de valente e machão
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